— Há 30 anos tenho 16!
— Ah?
— O primeiro ano foi terrível.
Mortimer recordou as semanas anteriores e assentiu.
— E por isso que você lê aqueles livros? — perguntou.
Constrangida, Ysabell baixou a cabeça e girou o pé nas pedras.
— São muito românticos — admitiu ela. — Tem umas histórias encantadoras: a menina que tomou veneno quando o namorado morreu, a outra que pulou de um penhasco porque o pai insistia que se casasse com um velho e aquela que preferiu se afogar a...
Mortimer ouviu, abismado. A julgar pelo material de leitura cuidadosamente escolhido por Ysabell, era digna de nota a mulher do Disco que sobrevivia a adolescência tempo suficiente para vestir o primeiro par de meias finas.
— ... então ela pensou que ele estivesse morto e se suicidou, aí ele acordou e também se matou, e teve uma menina...
O bom senso sugere que pelo menos algumas poucas mulheres entram na casa dos trinta sem se matarem por amor, mas parece que o bom senso não tinha nem papel coadjuvante naqueles dramas [5] Sem dúvida, os maiores amantes do Disco eram Mellius e Gretelina, cujo romance puro, apaixonado e dilacerante teria incendiado as páginas da História se, por algum inexplicável capricho do destino, eles não tivessem nascido com uma diferença de duzentos anos, em continentes diferentes. No entanto, os deuses se apiedaram e transformaram ele numa tábua de passar roupa [11] e ela num poste de amarração.
. Mortimer já havia notado que o amor nos deixa tristes, eufóricos, fracos e cruéis, mas não tinha se dado conta de que também pode nos deixar burros.
— ... nadava todas as noites no rio, mas uma noite teve uma tempestade e, quando ele não voltou, ela...
Instintivamente, Mortimer acreditava que alguns jovens casais se conheciam, digamos, num baile da cidade e se davam bem, saíam juntos por um ou dois anos, tinham algumas brigas, faziam as pazes, casavam e nem cogitavam se matar.
Ele percebeu que a ladainha do amor arrebatador estava em baixa.
— Ah — disse, baixinho. — E ninguém... vive bem?
— Amar é sofrer — decretou Ysabell. — Tem de haver muita desgraça.
— Tem?
— Com certeza. E agonia.
Ysabell pareceu se lembrar de algo.
— Você falou alguma coisa sobre romper e estar desatada? — perguntou, com a voz apertada de quem se recompõe.
Mortimer considerou a pergunta.
— Não — respondeu, afinal.
— Eu não estava prestando muita atenção.
— Não tem importância.
Os dois voltaram para casa em silêncio.
Quando Mortimer entrou no gabinete, descobriu que Morte havia saído, deixando quatro ampulhetas sobre a mesa. O grande livro de couro estava no atril, bem trancado.
Havia um bilhete debaixo das ampulhetas.
Mortimer imaginara que a letra de Morte seria gótica ou terrivelmente angulosa, mas na verdade Morte tinha estudado uma obra clássica sobre grafologia antes de escolher um estilo e adotara uma letra que indicava personalidade equilibrada e bem ajustada.
Dizia o bilhete:
Phui pescar. Them uma execução em Pseudópolis, uma nathural em Krull, uma queda fathal nas Montanhas Carrick, uma por malária em Ell-Kinte. O restho do dhia é seu.
Mortimer achava que a História estava se debatendo como um cabo de aço solto, zunindo para frente e para trás da realidade em grandes movimentos destrutivos.
A História não funciona assim. A História se desdobra com suavidade, como uma suéter velha. Já foi muitas vezes cerzida e remendada, remodelada para se ajustar a pessoas diversas, metida em caixas sob a pia da censura para ser criticada pelos espanadores da propaganda, e ainda assim sempre acaba conseguindo voltar à antiga forma. A História tem o costume de mudar as pessoas que pensam estar mudando-a. A História sempre tem uns truques na manga. Ela não nasceu ontem.
Eis o que estava acontecendo:
O golpe imprudente da foice de Mortimer havia partido a História em duas realidades distintas. Na cidade de Sto Lat, a princesa Keli ainda governava, com certa dificuldade e com o auxílio ininterrupto do reconhecedor real, que entrou para a folha de pagamento da corte e era encarregado de lembrar todos da existência dela. Nas terras estrangeiras, entretanto — além da planície, nas Ramtops, em torno do Mar Círculo e em toda a região até a Borda —, a realidade tradicional ainda dominava e ela estava morta, o duque era rei e o mundo seguia tranqüilamente de acordo com o planejado, qualquer que fosse ele.
A questão é que ambas as realidades eram verdadeiras.
A zona de contato estava atualmente a cerca de trinta quilômetros da cidade e ainda não era muito perceptível. Isso porque a (bem, podemos chamá-la de) diferença das tensões históricas ainda não se encontrava muito grande. Mas estava crescendo. Nas plantações de repolho, havia uma luz difusa no ar e um leve chiado, como gafanhotos na fritadeira.
O homem não altera a História mais do que os pássaros alteram o céu — apenas traça breves arranjos nela. Aos poucos, implacável como uma geleira e bem mais fria, a realidade real avançava em direção a Sto Lat.
* * *
Mortimer foi o primeiro a perceber.
Havia sido uma tarde longa. O alpinista se segurara no gelo até o último instante e o executado chamara Mortimer de lacaio do estado monarquista. Só a velhinha de 103 anos, que se despedira da vida acompanhada de toda a chorosa família, havia aberto um sorriso e comentado que ele estava um pouco pálido.
O Sol do Disco estava próximo ao horizonte quando Pituco ganhou os céus de Sto Lat, e Mortimer viu a fronteira da realidade. Ela se curvava logo abaixo, numa tênue névoa prateada. Ele não sabia o que era, mas experimentou o terrível pressentimento de que tinha algo a ver consigo próprio.
Deteve o cavalo e conduziu-o suavemente para o chão, pousando a alguns metros do muro de ar iridescente. O negócio se movia devagar, sibilando de leve ao avançar feito um fantasma pelas persistentes plantações de repolho e geladas valas de drenagem.
Era uma noite fria, daquelas em que a geada e a cerração brigam por controle e todo som é abafado. A respiração de Pituco produzia jatos de nuvem no ar parado. Ele relinchou baixinho, como quem pede desculpa, e deu uma patada no chão.
Mortimer desceu da sela e se aproximou da interface. Ela crepitava. Formas estranhas fulguravam ali dentro, flutuando, transformando-se e desaparecendo.
Depois de procurar, achou uma vara e espetou-a com cuidado no muro de ar. Surgiram estranhas ondulações, que cresceram lentamente até sumir.
Mortimer ergueu a cabeça ao notar um vulto cortando o céu. Era uma coruja preta, inspecionando as valas à procura de alimento.
Atingiu o muro num jorro de neblina, deixando uma ondulação em forma de coruja que aumentou de tamanho até se juntar ao caleidoscópio gasoso.
Então sumiu. Dava para enxergar através da interface transparente, e com certeza nenhuma coruja apareceu do outro lado. Quando Mortimer já começava a ficar intrigado, houve outro jorro silencioso a alguns metros de distância, e o pássaro ressurgiu completamente indiferente, afastando-se pelos campos.
Mortimer se recompôs e atravessou a barreira, que não era barreira alguma. Mas formigava.
Um instante mais tarde, Pituco entrava atrás dele, com os olhos revirados de desespero e cachos da interface agarrados nos cascos. Empinou-se, sacudindo a crina como um cachorro para se livrar dos filamentos aderentes de névoa, e encarou Mortimer com ar de súplica.
Mortimer pegou as rédeas, afagou-lhe o focinho e vasculhou o bolso atrás de um torrão de açúcar já sujo. Sabia estar na presença de algo importante, mas ainda não tinha certeza do que era.
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