Terry Pratchett
O Aprendiz de Morte
Nota da Edição Brasileira
Terry Pratchett usa muito humor e sutileza na hora de escolher os nomes usados em suas histórias. Isso é um desafio para a tradução: como recriar em português os mesmos trocadilhos que o autor faz, contando com a cumplicidade do leitor que os decifra e se diverte com as referências a seu cotidiano?
Por exemplo, o personagem Morte nos deu trabalho: o seu gênero no original, masculino, foi mantido nesta edição, embora possa soar estranho para nós, brasileiros, que nos referimos à morte usando o gênero feminino. Por outro lado, optamos por Discworld ao invés de Mundo do Disco e adaptamos os nomes que perderiam o sentido se traduzidos literalmente (como o filósofo Ly Tin Wheedle, cujo nome, que indica alguém que quer prejudicar os outros, foi adaptado para Yin Gha No).
O próprio herói do livro, Mort, foi alvo de muitas discussões. A intenção do autor foi utilizar um nome comum em inglês — Mortimer, equivalente a João ou José no Brasil — que tivesse um significado relacionado à morte (mort é o toque de trompa com que se anuncia a morte da caça, além de ser o apelido para quem tem esse nome). Neste caso, mantivemos o original, uma vez que, coincidentemente, ele também faz alusão, por semelhança, à morte.
Esperamos que você também explore os significados que Pratchett escondeu nos nomes deste livro. Se quiser dar a sua opinião, entre em contato conosco via internet, telefone, fax ou correio. Nas próximas edições, poderemos incorporar suas idéias.
Boa leitura!
Esta é a sala onde são guardados, à luz de velas, todos os marcadores do tempo: prateleiras e mais prateleiras de ampulhetas, cada qual para uma pessoa viva, derramando sua areia fina do futuro ao passado. O chio acumulado dos grãos caindo faz a sala retumbar como o oceano.
Este é o dono da sala, andando com ar de preocupação. Seu nome é Morte.
Mas não qualquer Morte. Este é o Morte cuja esfera particular de ações é, bem, nem um pouco esférica, mas sim o Discworld, que é plano, fica no lombo de quatro elefantes gigantescos — que, por sua vez, sustentam-se sobre a carapaça da enorme tartaruga estelar Grande A'Tuin —, e é contornado por uma queda-d'água a verter no espaço sem fim.
Cientistas calcularam que as chances de uma coisa tão notoriamente absurda acontecer são de uma em um milhão.
Mas os mágicos calcularam que chances de uma em um milhão ocorrem nove a cada dez vezes.
Sobre o chão de ladrilhos brancos e pretos, Morte avança com seus pés de osso, murmurando sob o capuz enquanto passeia os dedos esqueléticos pelas fileiras de ampulhetas em atividade.
Por fim, encontra uma que parece satisfazê-lo, suspende-a da prateleira e a leva até a vela mais próxima. Segura-a de modo a fazê-la reluzir sob a luz e fita o pontinho do brilho refletido.
Com as órbitas cintilantes, avista a tartaruga-mundo, gingando pelas profundezas do espaço com o casco marcado por cometas e meteoros. Um dia, mesmo a Grande A'Tuin vai morrer, Morte sabe disso; agora, seria um desafio.
Mas o foco do olhar se desvia para cima, em direção ao esplendor azul e verde do próprio Disco, a girar lentamente sob o minúsculo Sol.
Então se dirige para a grande cordilheira chamada Ramtops. As Ramtops são repletas de vales profundos, penhascos inusitados e mais características geográficas do que realmente precisariam. Possuem seu próprio clima, cheio de chuvas de pedra, ventos de chicote e tempestades permanentes. Algumas pessoas dizem que é assim porque as Ramtops guardam a magia antiga, selvagem. Não importa, algumas pessoas dizem qualquer bobagem.
Morte pisca os olhos, ajusta o foco. Então vê o terreno gramado das ladeiras que descem no sentido horário das montanhas.
Vê uma certa colina.
Um campo.
Um menino correndo.
Observa.
Então, numa voz que se assemelha a lajes de chumbo caindo sobre granito, diz:
— CERTO.
Não há dúvida de que existia alguma coisa mágica no solo daquela área irregular e montanhosa, solo este que — por causa da estranha tonalidade que dava à flora local — era conhecido como gramado octarina. Por exemplo, esse era um dos poucos lugares do Disco em que havia plantas reanuais.
Reanual é a planta que brota de trás para frente no tempo. Semeamos este ano, e elas brotam no ano passado.
A família de Mortimer havia se especializado em destilar vinho de uvas reanuais. As frutas eram muito poderosas e bastante procuradas por adivinhos, já que obviamente possibilitavam a visão do futuro. O único problema é que a ressaca vinha na manhã anterior, e era preciso beber muito para curá-la.
Em geral, os agricultores de grãos reanuais eram homens grandes e sérios, dados à introspecção e à observação atenta do calendário. O lavrador que descuida de semear grãos comuns só perde a safra, mas o fazendeiro que se esquece de deitar sementes de uma safra que foi colhida doze meses antes arrisca comprometer toda a estrutura da causalidade, sem falar no terrível constrangimento.
Também era terrivelmente constrangedor para a família de Mortimer que o filho mais novo não se mostrasse nem um pouco sério e tivesse o mesmo talento para a horticultura que uma estrela-do-mar morta. Não que fosse irreverente, mas tinha aquele jeito vago e satisfeito de prestar reverência que os homens sérios logo aprendem a detestar. Havia qualquer coisa de contagiante, talvez até fatal, naquilo. Ele era alto, ruivo e sardento, com o tipo de corpo que parece estar apenas ligeiramente sob controle do dono — como se fosse formado por joelhos.
Neste dia em particular, corria pelos campos mais altos, agitando as mãos e gritando.
O pai e o tio de Mortimer observavam com desânimo do alto de um muro de pedra.
— O que eu num entendo — disse o pai, Lezek — é que os pássaros nem voam. Eu voaria se visse aquilo correndo na minha direção.
— Ah. O corpo humano é um negócio maravilhoso. Quer dizer, as pernas dele vão pra todos os lados, mas a velocidade varia bastante.
Mortimer alcançou o fim de um rego. Um pombo gordo desviou lentamente do caminho.
— O coração dele tá no lugar — defendeu Lezek, com cautela.
— Ah, claro. É o resto que num tá.
— É organizado. Não come muito — continuou Lezek.
— Não. Dá pra ver.
Lezek olhou de soslaio para o irmão, que fitava o céu.
— Hamesh, ouvi dizer que tem uma vaga lá na fazenda — disse ele.
— Hum. Peguei um aprendiz.
— Ah — soltou Lezek, com tristeza. — Quando foi isso?
— Ontem — respondeu o irmão, mentindo com a rapidez de uma cascavel. — Tudo acertado. Desculpe. Olha, eu não tenho nada contra o pequeno Mort, entende? Ele é um menino excelente, só que...
— Eu sei, eu sei — cortou Lezek. — Num consegue achar o traseiro nem usando as duas mãos.
Os homens olharam o menino à distância. Ele havia caído. Alguns pombos tinham se aproximado para investigar.
— Ele não é burro — considerou Hamesh. — Não o que chamamos de burro.
— Tem tutano ali dentro — admitiu Lezek. — Às vezes ele começa a pensar tanto que a gente precisa bater na cabeça dele para conseguir chamar sua atenção. A avó ensinou a ler. Acho que superaqueceu a cabeça.
Mortimer havia se levantado e tropeçou na roupa.
— Cê precisa dar um ofício ao menino — sugeriu Hamesh, pensativo. — Talvez o sacerdócio. Ou a profissão de mago. Lêem muito, os magos.
Os irmãos se entreolharam. Em ambas as mentes se insinuou uma vaga idéia do que Mortimer seria capaz de fazer se pusesse as bem-intencionadas mãos num livro de magia.
Читать дальше