— Pegue outra carta.
— Também é a morte — apontou Keli.
— Você tinha devolvido aquela?
— Não. Pego outra?
— Pode pegar.
— Que coincidência!
— A terceira morte?
— Exatamente. É um baralho especial para pregar peças?
Keli tentou parecer tranqüila, mas mesmo ela pôde detectar a leve insinuação de histeria em sua voz.
Cortabem franziu a testa e levou cuidadosamente as cartas de volta ao baralho, misturou todas e abriu-as sobre a mesa, viradas para cima. Só havia uma morte.
— Ai, meu Deus! — exclamou ele. — Acho que isso vai ser sério. Posso ver a palma da sua mão, por favor?
Ele a examinou durante um longo tempo. Depois se dirigiu à cômoda, tirou uma lente de aumento da gaveta, limpou o mingau ali incrustado com a manga do manto e passou mais alguns minutos inspecionando a mão. Por fim, recostou-se, tirou a lente e olhou para ela.
— Você está morta — anunciou.
Keli se limitou a esperar. Não conseguia pensar em nenhuma resposta apropriada. Faltava estilo a “Não estou”, ao passo que “Jura?” parecia frívolo demais.
— Eu disse que ia ser sério? — perguntou Cortabem.
— Acho que sim — respondeu Keli, tentando manter o equilíbrio.
— Eu estava certo.
— Ah.
— Pode ser fatal.
— Mais fatal do que já estar morta?
— Não estava me referindo a você.
— Ah.
— Alguma coisa muito elementar parece ter desandado, entende? Você está morta em todos os sentidos menos no, hã, real. Quer dizer, as cartas acham que você está morta. Sua linha da vida acha que você está morta. Tudo e todos acham que você está morta.
— Eu não acho! — contestou Keli, sem muita convicção.
— Temo que sua opinião não conte.
— Mas as pessoas me enxergam e me ouvem!
— A primeira coisa que aprendemos quando nos matriculamos na Universidade Invisível é que ninguém dá muita atenção a isso. O importante é o que a mente nos diz.
— Então as pessoas não me enxergam porque suas mentes dizem para não me ver?
— Exatamente. Chama-se predestinação ou algo assim.
Cortabem a fitou, com tristeza.
— Eu sou mago. Sabemos dessas coisas. Aliás, não é a primeira coisa que aprendemos quando nos matriculamos — acrescentou. — Quer dizer, antes disso aprendemos onde ficam os banheiros e tal. Mas depois é a primeira coisa.
— Só que você me enxerga!
— Ah. Bem. Os magos são treinados para enxergar o que existe e não enxergar o que não existe. Tem uns exercícios especiais...
Keli tamborilou os dedos na mesa, ou ao menos tentou. Acabou não sendo fácil. Olhou para baixo, com certo nojo.
Cortabem se adiantou para limpar a mesa com a manga do manto.
— Desculpe — murmurou. — Preparei uns sanduíches de melaço ontem à noite...
— O que posso fazer?
— Nada.
— Nada?
— Bem, com certeza poderia se tornar uma ladra muito bem-sucedida... desculpe. Foi de mau gosto da minha parte.
— Também achei.
Sem jeito, Cortabem lhe deu tapinhas na mão, mas Keli estava preocupada demais para notar o crime flagrante de lesa-majestade.
— Sabe, tudo é determinado. A História já está escrita, do começo ao fim. Os fatos não importam; a História passa por cima. Não podemos mudar nada porque as mudanças já fazem parte dos acontecimentos. Você está morta. É o destino. Vai ter de aceitar.
Ele abriu um sorriso escusatório.
— Você tem mais sorte do que a maioria dos mortos, se encarar a coisa de maneira objetiva — continuou. — Está viva para aproveitar.
— Mas não aceito. Por que deveria? Não é minha culpa!
— Você não entende. A História continua. E você já não faz parte dela. É melhor deixar as coisas seguirem seu rumo.
Ele outra vez lhe afagou a mão. Ela o fitou. Ele recolheu a mão.
— Então o que devo fazer? — perguntou ela. — Deixar de comer porque a comida não se destina a mim? Ir viver numa caverna, em algum lugar distante?
— Paradoxal, não é? — concordou ele. — Mas é sua sina. Se o mundo não a enxerga, você não existe. Eu sou mago. Sabemos dessas...
— Pare de dizer isso.
Keli se levantou.
Cinco gerações antes um de seus antepassados havia parado a alguns quilômetros da montanha de Sto Lat com seu bando de criminosos nômades e contemplado a cidade adormecida com uma fisionomia particularmente determinada que dizia: “Essa serve. Só porque nascemos na sela não quer dizer que tenhamos de morrer sobre o maldito negócio”.
Por mais estranho que pareça, muitas de suas características haviam, por artimanhas da hereditariedade, sido legadas àquela descendente [3] Mas não o bigode arqueado nem o chapéu redondo de pele. E seguia por três horas. A realidade, que em geral não pode arcar com os custos dos poetas, sugere que na verdade o discurso inteiro tenha sido o seguinte: “Rapazes, a maioria deles ainda está na cama, vamos atacar feito cólica, já estou de saco cheio de dormir em tenda, tudo bem?”.
, o que lhe explicava a beleza um tanto idiossincrática. Mas nunca estiveram tão patentes quanto agora. Até Cortabem ficou impressionado. Quando o assunto era determinação, poderíamos quebrar pedras na cabeça dela.
No mesmo tom de voz que o antepassado havia usado para se dirigir a seus discípulos exaustos e cobertos de suor antes do ataque [4] O discurso foi transmitido às gerações seguintes num poema épico encomendado pelo filho dele, que não nasceu em nenhuma sela e sabia comer com garfo e faca. Começava assim: “Vejam adiante, dormem os inimigos apáticos”. Cheios de ouro roubado, os imorais depravados. Que as lanças da fúria sejam como o fogo da estepe em dia de vento, na estação mais seca. Que a lâmina honesta penetre como os chifres “de um touro de cinco anos com dor de dente severa...” E seguia por três horas. A realidade, que em geral não pode arcar com os custos dos poetas, sugere que na verdade o discurso inteiro tenha sido o seguinte: Rapazes, a maioria deles ainda está na cama, vamos atacar feito cólica, já estou de saco cheio de dormir em tenda, tudo bem?”
, ela disse:
— Não, não e não! Não aceito! Não vou me reduzir a uma espécie de fantasma. Você vai me ajudar, mago.
Cortabem reconhecia aquela inflexão. Ela era capaz de fazer até os carunchos nas tábuas do chão pararem suas perfurações e se porem em alerta. Não exprimia uma opinião, mas dizia: as coisas serão assim.
— Eu, dona? — perguntou ele. — Nem imagino como poderia...
Ele se viu içado da cadeira e puxado pela rua, com o manto esvoaçando ao redor. Keli avançava em direção ao castelo com os ombros decididamente erguidos, arrastando o mago como a um cachorrinho relutante. É assim que as mães costumam entrar na escola quando o filho chega em casa com o olho roxo. É irrefreável. É como a Marcha do Tempo.
— O que você pretende? — gaguejou Cortabem, terrivelmente ciente de que não haveria nada que pudesse fazer para impedir o que quer que fosse.
— Mago, é seu dia de sorte.
— Ah, que bom — balbuciou ele.
— Você acaba de ser nomeado reconhecedor real.
— Ah. E o que é isso exatamente?
— Vai lembrar a todo mundo que estou viva. É muito simples. Três refeições e roupa lavada. Ânimo, homem.
— Real?
— Você é mago. Acho que tem uma coisa que precisa saber — disse a princesa.
— TEM? — perguntou Morte.
(Esse é um truque cinematográfico adaptado para o texto impresso). Morte não estava conversando com a princesa. Mas causou um ótimo efeito, não causou? O artifício provavelmente se chama dissolução rápida ou corte em zoom. Ou qualquer outra coisa. A indústria que chama um técnico veterano de contra-regra pode dar a isso o nome que quiser.)
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