— E O QUE É? — acrescentou Morte, enrolando um pedaço de linha preta num pequeno torno que havia prendido à mesa.
Mortimer hesitou. Em grande parte isso se deu por medo e constrangimento, mas também porque a visão de um espectro encapuzado criando com tranqüilidade moscas artificiais era suficiente para fazer qualquer um parar.
Além disso, Ysabell estava sentada no outro extremo do gabinete, aparentemente fazendo tricô mas também observando-o através da nuvem da censura. Dava para sentir os olhos pintados de vermelho cravados em sua nuca.
Morte juntou umas penas de corvo e assobiou por entre os dentes, sem ter mais com o que assobiar. Ergueu a cabeça.
— Hmm?
— Não... foi tão fácil quanto imaginei — disse Mort, parado diante da mesa.
— TEVE ALGUM PROBLEMA? — perguntou Morte, cortando alguns pedaços de pena.
— Bem, a bruxa não quis vir e o monge começou tudo outra vez.
— Nesse ponto, não há com o que se preocupar, rapaz...
— ... Mort...
— ... VOCÊ JÁ DEVERIA TER ENTENDIDO QUE TODO MUNDO RECEBE O QUE ESPERAVA. É MUITO MAIS SIMPLES ASSIM.
— Eu sei, senhor. Mas isso significa que as pessoas más que imaginam ir para alguma espécie de paraíso acabam indo mesmo. E as pessoas boas que temem ir para um lugar horrível sofrem o pão que o diabo amassou. Não me parece justo.
— O QUE FOI QUE EU DISSE QUE VOCÊ PRECISAVA LEMBRAR QUANDO ESTIVESSE EM SERVIÇO?
— Bem, o senhor...
— Hmm?
Mortimer gaguejou até se calar.
— NÃO EXISTE JUSTIÇA. SÓ EXISTE VOCÊ.
— Bem, eu...
— NÃO PODE SE ESQUECER DISSO.
— Eu sei, mas...
— NO FIM, IMAGINO QUE TUDO ACABE BEM. NÃO CONHEÇO O CRIADOR, MAS ME DISSERAM QUE VÊ AS PESSOAS COM BONS OLHOS.
Morte cortou a linha e começou a desenrolar o torno.
— TIRE ESSAS IDÉIAS DA CABEÇA — acrescentou. — PELO MENOS, A TERCEIRA NÃO DEVE TER LHE DADO NENHUM PROBLEMA.
Era este o momento. Mortimer vinha pensando nele havia muito tempo. Não fazia sentido esconder. Ele tinha perturbado todo o curso futuro da História. Essas coisas costumam chamar a atenção das pessoas. Melhor tirar o peso da consciência. Confessar-se como homem. Receber o castigo. Cartas na mesa. Circunlóquios, jamais. Antes pedir misericórdia.
Os penetrantes olhos azuis o fitaram.
Ele sustentou o olhar como um coelho noturno tentando enfrentar os faróis de um caminhão de dezesseis rodas cujo motorista é um maníaco viciado em café excedendo os tacômetros do inferno.
Não conseguiu.
— Não, senhor — respondeu.
— ÓTIMO. MUITO BEM. E AGORA O QUE ACHA DISSO?
Os pescadores acham que uma boa mosca artificial é aquela que imita o bicho à perfeição. Existem moscas ideais para a manhã. Existem moscas diferentes para a noite. E assim por diante.
Mas o negócio entre os dedos triunfantes de Morte era uma mosca da aurora dos tempos. Era a mosca do caldo primordial. Alimentada em bosta de mamute. Não era uma mosca que se debate em janelas, era uma mosca que fura paredes. Era um inseto que se arrastaria após o mais pesado dos tapas, derramando veneno e querendo vingança. O corpo possuía asas estranhas e pedaços oscilantes. Parecia haver muitos dentes.
— Como chama? — perguntou Mort.
— VOU CHAMÁ-LA DE... A GLÓRIA DE MORTE.
Deu uma última olhada no bicho e meteu-o no capuz do manto.
— ESSA NOITE ESTOU PENSANDO EM VER UM POUCO DE VIDA. VOCÊ PODE FAZER O SERVIÇO, AGORA QUE JÁ PEGOU O JEITO.
— Sim, senhor — disse Mort, num lamento.
Ele viu a vida se estender diante de si como um longo túnel sem luz no fim.
Morte tamborilou os dedos na mesa, murmurou alguma coisa.
— AH, SIM — lembrou-se afinal. — ALBERT DISSE QUE ALGUÉM VEM FUXICANDO A BIBLIOTECA.
— Como, senhor?
— TIRANDO OS LIVROS DO LUGAR, DEIXANDO-OS ESPALHADOS. LIVROS SOBRE MENINAS. ELE PARECE ACHAR DIVERTIDO.
Como já foi dito, os Ouvintes sagrados possuem uma audição tão desenvolvida que podem ficar surdos com um bom pôr-do-sol. Apenas por um instante, Mortimer achou que a pele de sua nuca estava desenvolvendo poderes semelhantes, porque ele podia ver Ysabell paralisada entre os pontos do tricô. E também ouviu a breve inspiração de ar que já ouvira uma vez, em meio às estantes. Lembrou-se do lenço de renda.
E disse:
— Sim, senhor. Não vai se repetir.
A pele da nuca começou a coçar.
— MARAVILHA. AGORA VOCÊS DOIS PODEM SAIR. PEÇAM AO ALBERT QUE PREPARE UM PIQUENIQUE OU ALGO ASSIM. TOMEM UM POUCO DE AR FRESCO. JÁ NOTEI COMO VOCÊS PARECEM SE EVITAR... — ELE DEU UMA CUTUCADA CONSPIRATÓRIA EM MORTIMER (ERA COMO SER TOCADO POR UMA VARA) E ACRESCENTOU: — ALBERT ME CONTOU O QUE ISSO QUER DIZER.
— Contou, é? — perguntou Mort, com pesar.
Ele estava errado: havia luz no fim do túnel, e era um lança-chamas.
Morte lhe dirigiu outra de suas piscadas à supernova.
Mortimer não retribuiu. Deu meia-volta e avançou para a porta numa velocidade média que faria Grande A'Tuin parecer um cordeiro.
Estava na metade do corredor quando ouviu passos apressados e sentiu lhe tocarem o braço.
— Mort?
Virou-se e encarou Ysabell através da névoa da depressão.
— Por que o deixou pensar que fosse você na biblioteca?
— Não sei.
— Foi... muita... gentileza sua — admitiu ela.
— Foi? Não sei o que deu em mim... — Ele enfiou a mão no bolso e pegou o lenço. — Acho que isso é seu.
— Obrigada.
Ela assoou o nariz.
Mortimer seguiu adiante, com os ombros curvados como as asas de um urubu. Ela correu atrás dele.
— Olhe! — chamou.
— Quê?
— Eu queria agradecer.
— Não foi nada — murmurou Mort. — Mas seria melhor se você não pegasse mais os livros. Acho que os deixa perturbados. — Ele soltou o que considerava ser uma risada triste — Rá.
— Como rá?
— Só rá!
Havia chegado ao fim do corredor. Lá estava a porta da cozinha, onde Albert o olharia de soslaio. Decidiu que agora não suportaria aquilo, e se deteve.
— Mas eu só pego os livros para me fazerem companhia — justificou Ysabell, atrás dele.
Mortimer cedeu.
— Podemos dar uma volta no jardim — sugeriu, era desespero, e então conseguiu endurecer um pouco a voz e acrescentar: — Sem compromisso.
— Quer dizer que não vai se casar comigo? — perguntou ela. Mortimer ficou horrorizado.
— Casar?
— Não foi para isso que papai trouxe você para cá? — indagou ela. — Afinal de contas, ele não precisa de nenhum aprendiz.
— Você está falando de todas essas piscadas, cutucadas e observações do tipo “meu filho um dia isso tudo será seu?” — alarmou-se Mort. — Eu tentei ignorar. Ainda não quero me casar com ninguém — acrescentou, reprimindo a imagem mental da princesa. — E certamente não com você, sem querer ofender.
— Eu não me casaria com você nem que fosse o último homem sobre o Disco — observou ela, com doçura.
Mortimer ficou magoado. Uma coisa era não querer casar, outra coisa era ouvir alguém dizer que não queria casar com você.
— Pelo menos eu não tenho a aparência de quem há anos vem comendo biscoito dentro do armário — objetou ele, quando os dois saíram para o jardim negro de Morte.
— Pelo menos eu não ando como se minhas pernas tivessem mais de um joelho cada — rebateu ela.
— Só que meus olhos não são dois ovos pochés estornorosos.
Ysabell assentiu.
— Por outro lado, minhas orelhas não parecem um troço esquisito nascendo de uma árvore morta. O que quer dizer estornoroso?
— Aqueles ovos que o Albert prepara.
— Com a parte branca toda grudenta, gotejante e cheia de pedaços mais finos?
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