Ela se inclinou para o outro lado e gritou no ouvido do Capitão dos Porcos:
— Você não está me enxergando? Por que temos de comer salame e presunto?
Ele interrompeu a conversa com a Mulher do Pequeno Quarto Hexagonal na Torre do Norte, dirigiu a Keli um olhar demorado em que o choque logo cedeu lugar a uma espécie de atordoamento difuso, e respondeu:
— Ora, claro... estou... há...
— Sua Alteza — lembrou Keli.
— Mas... é... Sua Alteza — murmurou o capitão. Houve uma longa pausa.
Então, como se voltasse a si, ele lhe deu as costas e retomou a antiga conversa.
Por um instante, Keli se limitou a ficar ali sentada, branca de raiva e estupefação, então afastou a cadeira e saiu correndo para os seus aposentos. Dois empregados que dividiam um cigarro no corredor foram atropelados por algo que não conseguiram divisar.
Keli entrou no quarto e puxou a corda que deveria ter feito a criada sair em disparada da sala de espera, no fim do corredor, e se apresentado. Durante algum tempo nada aconteceu, então a porta se abriu devagar e um rosto se enfiou pela fresta.
Dessa vez, a princesa reconheceu a fisionomia e já estava preparada. Agarrou a empregada pelos ombros e arrastou-a para dentro do quarto, fechando a porta. Como a mulher apavorada olhasse para todos os lados menos para ela, Keli abriu a mão e lhe deu um tapa no rosto.
— Sentiu isso? Sentiu? — berrou ela.
— Mas... a senhorita... — sussurrou a criada, recuando até dar na cama e cair sentada sobre ela.
— Olhe para mim! Olhe para mim quando falo com você! — exigiu Keli, avançando para a menina. — Você está me vendo, não está? Diga que está ou vou mandar executá-la!
A criada fitou os olhos horrorizados da princesa.
— Estou vendo — admitiu ela. — Mas...
— Mas o quê? Mas o quê?
— A senhorita está... eu ouvi dizer... achei...
— Achou o quê? — perguntou Keli.
Ela já não gritava mais. As palavras saíam como açoites.
A criada desatou a chorar. Por um instante, Keli ficou batendo o pé no chão, depois sacudiu de leve a mulher.
— Tem algum mago na cidade? — indagou ela. — Olhe para mim, para mim. Tem um mago, não tem? As meninas estão sempre fugindo do trabalho para falar com o mago! Onde ele mora?
A mulher voltou o rosto molhado de lágrimas para ela, lutando contra todos os instintos a lhe afirmarem que a princesa não mais existia.
— Há... mago, é... Cortângulo, na Rua do Muro...
Os lábios de Keli se abriram num sorriso. Ela se perguntou onde ficavam guardadas as capas, mas a razão lhe disse que seria mais fácil achá-las por conta própria do que tentar se impor à empregada. Decidiu esperar, observando com atenção o desenrolar dos acontecimentos: a mulher parou de soluçar, olhou à volta ligeiramente espantada e saiu correndo do quarto.
Já me esqueceu, pensou. Olhou as próprias mãos. Pareciam sólidas o bastante.
Aquilo tinha de ser magia.
Ela entrou no closet e abriu alguns armários, até achar uma capa preta com capuz. Vestiu-a, saiu para o corredor e desceu a escada de serviço.
Não andava por ali desde pequena. Aquele era o mundo dos armários de roupa de cama, mesa e banho, dos cômodos simples e dos carrinhos de serviço. Cheirava a pão levemente dormido.
Keli seguia como um espectro materializado. Sabia da existência do alojamento de empregados, é claro, da mesma forma que as pessoas sabem da existência de sarjetas e esgotos, e estava pronta para admitir que, embora fossem todos muito parecidos, deveria haver algumas características particulares pelas quais seus entes queridos presumivelmente pudessem identificá-los. Mas não estava pronta para ver coisas como Moghedron, o criado encarregado da adega — que até então só considerara uma figura imponente, sempre se locomovendo como um navio a todo vapor —, sentado na despensa, com o paletó aberto e fumando cachimbo.
Duas criadas passaram correndo por ela, dando risadas. Keli seguiu adiante, ciente de que de algum modo estava invadindo seu próprio castelo.
E isso, notou, acontecia porque aquele castelo não era de forma alguma seu. O mundo barulhento ao redor, com lavanderias fumegantes e copas frias, não pertencia a ninguém. Ela não poderia possuí-lo. Talvez ele a possuísse.
Pegou uma coxa de galinha na mesa da cozinha maior — uma caverna coberta por tantas panelas que mais parecia um arsenal para tartarugas — e sentiu a desconhecida emoção de roubar. Roubar! No seu próprio reinado! E o cozinheiro olhou através dela, com os olhos vidrados.
A princesa correu pelo estábulo até o portão dos fundos, passando por dois guardas cujos olhares duros não conseguiram notá-la.
Na rua, não foi tão terrível, mas ainda se sentia estranhamente nua. Era irritante estar entre indivíduos que seguiam fazendo suas coisas sem se incomodar de olhar para a pessoa, quando toda a experiência de mundo da pessoa era tê-lo girando ao seu redor. Os pedestres davam encontrão na pessoa e se afastavam, por um breve espaço de tempo se perguntando no que haviam batido, e a pessoa várias vezes tinha de correr de carroças.
A coxa de galinha não fora suficiente para preencher o buraco deixado pela falta do almoço, e ela roubou duas maçãs de uma barraca, fazendo uma anotação mental para pedir ao camareiro que descobrisse o preço das frutas e enviasse o dinheiro ao dono da barraca.
Desgrenhada, um tanto encardida e cheirando levemente a bosta de cavalo, ela chegou afinal à porta de Cortabem. A aldrava lhe deu algum trabalho. Em sua experiência, as portas se abriam sozinhas; havia pessoas especiais designadas para isso.
Tentou outra vez e imaginou ouvir o ruído distante de algo se quebrando. Depois de algum tempo, a porta se abriu por alguns centímetros e ela entreviu um rosto redondo, rubro, coroado por cabelos encaracolados. O pé direito dela a surpreendeu por se meter espertamente na fresta.
— Exijo ver o mago — anunciou. — Peço que me receba imediatamente.
— Ele está ocupado no momento — disse o rosto. — Você estava querendo uma poção do amor?
— Uma o quê?
— O ungüento Campo da Paixão Cortabem está em promoção — sugeriu o homem, e piscou o olho. — Proporciona um maravilhoso leito de rosas garantindo o malogro da safra, se é que me entende.
Keli ergueu a cabeça.
— Não — mentiu, com frieza. — Não entendo.
— Termo de Donzela? Lágrima de Beladona?
— Eu exijo...
— Sinto muito, estamos fechados — desculpou-se o homem, e bateu a porta.
Keli tirou o pé a tempo.
Balbuciou algumas palavras que deixariam seus tutores perplexos e esmurrou a madeira.
De repente, as batidas se espaçaram, e a princesa entendeu o que havia acabado de acontecer.
Ele a tinha visto! Ele a tinha visto!
Golpeou a porta com vigor renovado, gritando a plenos pulmões.
Uma voz ao seu ouvido disse:
— Não adianta. Ele é muito cabeza-dura.
Ela correu os olhos à volta e se deparou com o olhar impertinente da aldrava. O objeto balançou as sobrancelhas de metal para ela e falou de maneira indistinta através da argola de ferro batido.
— Eu sou a princesa Keli, herdeira ao trono de Sto Lat — avisou, orgulhosa, contendo seu pavor. — E não falo com acessórios de porta.
— Bem, eu zou zó uma aldrava e pozo falar com quem quiser — afirmou a gárgula, satisfeita. — Aí pozo dizer que o patrão está tendo um dia difízil e não quer zer incomodado. Mas vozê poderia tentar a palavrinha mágica — acrescentou. — Vindo de uma mulher bonita, funziona noventa porzento das vezes.
— Palavrinha mágica? Que palavrinha mágica?
A aldrava riu.
— Dona, zerá que não lhe enzinaram nada?
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