— Eu gosto daqui.
— Você está acabando com a minha vida.
— Dureza, né?
Spider andou pelo corredor e abriu a porta que dava para o quarto extra de Fat Charlie. A luz tropical do sol inundou o corredor por um instante, e então a porta se fechou.
Fat Charlie lavou os cabelos com água fria. Escovou os dentes. Vasculhou o cesto de roupas sujas até encontrar uma calça jeans e uma camiseta que, por estarem no fundo, estavam quase limpas de novo. Colocou a roupa e um suéter roxo com um ursinho de pelúcia que sua mãe lhe dera e ele nunca usara, mas também não tivera a oportunidade de doar.
Caminhou até o fim do corredor.
Podia-se ouvir o bum-tchá-bum do som do baixo e da bateria através da porta.
Fat Charlie chacoalhou a maçaneta. A porta não cedeu.
— Se você não abrir essa porta, eu vou arrombá-la.
A porta abriu sem aviso, e Fat Charlie entrou correndo no quarto de despensa no fim do corredor. A vista na janela era a parte de trás da casa que havia nos fundos — o pouco que se podia ver dela através da chuva que castigava a vidraça.
Mesmo assim, de algum lugar, a somente uma parede de distância, havia um aparelho de som tocando música bem alto: tudo no quarto de despensa vibrava com um distante bum-tchá-bum.
— Certo — começou Fat Charlie, em tom casual. — Obviamente você tem consciência de que isso é uma declaração de guerra.
Era o grito tradicional de guerra do coelho, quando provocado. Há lugares em que as pessoas acreditam que Anansi foi um coelho que pregava peças. Elas estão erradas, é claro. Anansi era uma aranha. Talvez você pense que as duas criaturas não poderiam ser confundidas, mas isso acontece com mais freqüência do que você imagina.
Fat Charlie foi para seu quarto. Pegou o passaporte em uma gaveta perto da cama. Encontrou sua carteira onde a tinha deixado, no banheiro.
Desceu a avenida principal e, na chuva, fez sinal para um táxi.
— Para onde?
— Aeroporto de Heathrow — disse Fat Charlie.
— Certo. Qual terminal?
— Não faço a menor idéia — respondeu Fat Charlie, consciente de que deveria saber uma coisa dessas. Afinal de contas, fazia poucos dias. Perguntou ao motorista:
— De que terminal sai avião para a Flórida?
Grahame Coats começou a planejar sua saída da agência Grahame Coats na época em que John Major era primeiro-ministro (Sucessor de Margaret Thatcher, foi chefe do governo britânico entre 1990 e 1997). Afinal, nada que é bom dura para sempre. Mais cedo ou mais tarde, como o próprio Grahame Coats tinha o prazer de assegurar, mesmo se você tem um pato que bota ovos dourados, ele irá para a panela. Embora seu plano fosse bom — nunca se sabe quando é preciso ir embora de uma hora para outra, e ele estava ciente de que os acontecimentos formavam uma nuvem negra no horizonte —, resolveu adiar sua partida para o momento em que não pudesse mais adiá-la.
O mais importante, decidira havia muito tempo, não era ir embora, e sim desaparecer, evaporar, escafeder-se sem deixar rastro.
Num cofre oculto em seu escritório — um escritório espaçoso do qual se sentia bastante orgulhoso —, sobre uma prateleira que ele mesmo instalara e recentemente precisou ser recolocada no lugar depois que caiu, havia uma maletinha de couro com dois passaportes: um em nome de Basil Finnegan e outro em nome de Roger Bronstein. Cada um desses homens nascera havia 50 anos, assim como Grahame Coats, mas tinham morrido em seu primeiro ano de vida. Ambas as fotografias nos passaportes eram de Grahame Coats. A maletinha também continha duas carteiras, cada uma com um conjunto de cartões de crédito e documentos com fotos no nome do titular de cada um dos dois passaportes. Cada nome era signatário das contas nas Ilhas Cayman, as quais por sua vez desviavam dinheiro para outras contas nas Ilhas Virgens Britânicas, na Suíça e em Liechtenstein.
Grahame Coats planejava ir embora de vez no seu aniversário de 50 anos, que aconteceria dali a pouco mais de um ano. No momento, pensava sobre o problema de Fat Charlie.
Ele na verdade não esperava que Fat Charlie fosse para a prisão, embora não fizesse objeção a essa possibilidade, caso ocorresse. Queria que ele ficasse com medo, perdesse sua reputação, sumisse.
Grahame Coats sentia grande alegria em ludibriar os clientes da Agência Grahame Coats, e era bom nisso. Ficou bastante surpreso ao descobrir que, contanto que escolhesse sua clientela com cuidado, as celebridades e artistas que representava sabiam muito pouco sobre finanças e ficavam aliviadas ao descobrir que alguém os representaria, administraria seu dinheiro e as certificaria de que não havia com o que se preocuparem. Se às vezes havia cheques que demoravam a chegar em suas contas, ou se havia débitos diretos não-identificados nas contas dos clientes, Grahame Coats tinha uma grande rotatividade com seus funcionários, especialmente no departamento de contabilidade, e nada era mais fácil do que pôr a culpa na incompetência de um ex-funcionário ou fazer quem desconfiava mudar de idéia com uma caixa de champanhe e um cheque gordo como pedido de desculpas.
Não que gostassem de Grahame Coats ou que confiassem nele. Até mesmo os que eram representados por ele o consideravam um sujeito não confiável, uma doninha esperta. Mas acreditavam que conseguiam domar aquela doninha, fazê-la trabalhar para eles, e era aí que se enganavam.
Grahame Coats só trabalhava para si mesmo.
O telefone em sua mesa tocou, e ele atendeu.
— Sim?
— Senhor Coats? Maeve Livingstone está na linha. Eu sei que o senhor disse para transferi-la para o Fat Charlie, mas ele está de folga, e eu não sabia o que dizer. Digo que o senhor não está?
Grahame Coats pensou por alguns instantes. Antes que um ataque repentino do coração o levasse embora, Morris Livingstone, que fora certa vez o mais adorado comediante baixinho de Yorkshire do país, era a estrela de séries famosas da TV, como Short Back and Slidese seu programa de variedades do sábado, Morris Livingstone, I Presume. Até havia emplacado uma música entre “dez mais” na década de 80: “It s Nice Out (But Put It Away)”. Pessoa amigável e pacífica, não apenas deixara seus assuntos financeiros aos encargos da Agência Grahame Coats como também estabelecera, por sugestão de Grahame Coats, que o próprio Coats fosse fiduciário de seus bens.
Seria um crime não ceder a uma tentação dessas.
E havia também Maeve Livingstone. Seria justo dizer que ela havia aparecido por muitos anos, sem saber, em papéis principais e secundários nas mais diversas fantasias ocultas de Grahame Coats.
Grahame Coats disse à secretária:
— Sim, pode transferi-la. — E então, com voz solícita: — Maeve, como é bom falar com você. Como vai?
— Não muito bem.
Maeve Livingstone era dançarina quando conheceu Morris, e sempre foi mais alta que seu marido baixinho. Eles se adoravam.
— Bom, por que não me conta?
— Eu falei com Charles alguns dias atrás. Eu andei pensando. Bem, o gerente do meu banco andou pensando... O dinheiro de Morris. Você disse que nós receberíamos uma parte dele mais ou menos nesta época.
— Maeve — respondeu Grahame Coats com o que ele imaginava ser sua voz mais aveludada e profunda, a voz que acreditava atrair as mulheres —, o problema não é que o dinheiro não está na sua conta. E apenas uma questão de liquidez. Como eu já disse, Morris fez vários investimentos imprudentes no fim da vida e, embora ele também tenha feito alguns bons investimentos, seguindo meus conselhos, precisamos deixar que esses bons investimentos tenham tempo para amadurecer. Não podemos tirar o dinheiro agora sem perder tudo. Mas não vos preocupais, não vos preocupais. Faço qualquer coisa por uma boa cliente. Eu farei um cheque da minha própria conta bancária para deixá-la com saldo. Quanto é que o gerente quer?
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