— Mas eu estou morrendo de fome. E a gente só vai chegar lá daqui a mais de duas horas.
— Não — discordou ela com firmeza. — Não comigo dirigindo.
Então ela acelerou. De vez em quando, quando a perua vermelho-escuro estremecia na estrada, Fat Charlie fechava bem os olhos e ao mesmo tempo apertava com o pé esquerdo um freio imaginário. Era exaustivo.
Em muito menos de duas horas chegaram à última saída da estrada de pedágio e passaram para a estrada local. Dirigiram-se à cidade. Passaram pela Barnes and Noble e pelo Office Depot. Olharam de passagem casas que valiam milhões de dólares, com seguranças na frente. Percorreram as ruas residenciais mais antigas, que Fat Charlie lembrava estarem mais bem cuidadas quando era pequeno. Viram a vendinha de comida indiana e o restaurante com bandeira jamaicana na janela, com cartazes escritos à mão fazendo propaganda dos pratos especiais do dia: arroz com rabada, cerveja caseira e frango ao curry.
Fat Charlie ficou com água na boca. Seu estômago roncou.
O carro deu uma guinada e balançou. Agora as casas eram mais velhas, e dessa vez tudo parecia familiar.
Os flamingos cor-de-rosa de plástico ainda faziam pose no jardim da frente da casa da Sra. Dunwiddy, embora o sol os tivesse deixado desbotados com o passar dos anos. Havia também uma bola de cristal espelhada e, quando Fat Charlie passou por ela e a viu, ficou com muito medo por um instante.
— As coisas estão muito ruins lá com o Spider? — perguntou a Sra. Higgler enquanto caminhavam para a porta de entrada.
— Vamos dizer assim: eu acho que ele está dormindo com a minha noiva. Algo que eu mesmo nunca fiz.
— Ah. Xiiii — fez a senhora Higgler. E tocou a campainha.
“É mais ou menos como Macbeth” , pensou Fat Charlie uma hora depois. Na verdade, se as bruxas em Macbeth fossem quatro velhinhas e se, em vez de remexerem um caldeirão e realizarem encantamentos, elas convidassem Macbeth e oferecessem a ele peru, arroz e ervilhas em pratos de porcelana branca, sobre uma toalha de mesa xadrez de plástico vermelho — para não mencionar também a torta de batata-doce e o repolho apimentado —, e o encorajassem a se servir uma segunda vez, e uma terceira, e, quando Macbeth declarasse que não, que já estava bem cheio, a ponto de explodir, e não poderia comer mais, e as bruxas insistissem para que ele provasse a receita especial de arroz-doce típico e uma grande fatia da famosa torta de abacaxi da Sra. Bustamonte, teria sido exatamente como Macbeth.
— Pois então — começou a Sra. Dunwiddy, limpando uma migalha de bolo de abacaxi do canto da boca. — Eu soube que o seu irmão foi ver você.
— Sim. Eu falei com uma aranha. Acho que foi culpa minha. Nunca achei que fosse acontecer alguma coisa.
Um coro de “xiii” e “tsc, tsc” percorreu a mesa enquanto a Sra. Higgler, a Sra. Dunwiddy, a Sra. Bustamonte e a Sra. Noles estalavam a língua e balançavam a cabeça.
— Ele sempre dizia que você era o filho mais bobo — observou a Sra. Noles. — O seu pai. Mas eu nunca acreditei nele.
— Ora, como eu ia saber? — protestou Fat Charlie. — Os meus pais nunca me disseram algo como: “Ah, filho, a propósito, você tem um irmão que você não conhece. Se convidá-lo para aparecer na sua vida, ele vai fazer a polícia ir atrás de você, dormir com a sua noiva e não vai apenas se mudar para sua casa como também vai criar uma casa nova para ele no quarto extra. E vai lhe fazer uma lavagem cerebral, obrigando você a ir ao cinema e passar a noite inteira tentando chegar em casa e...”
Ele parou de falar. Era o modo como elas olhavam para ele.
Todas suspiraram. O suspiro passou da Sra. Higgler para a Sra. Noles, e da Sra. Noles para a Sra. Bustamonte, e da Sra. Bustamonte para a Sra. Dunwiddy. Era um efeito um tanto perturbador, meio assustador, mas a Sra. Bustamonte arrotou e quebrou o clima.
— Então o que você deseja? — perguntou a Sra. Dunwiddy. — Diga o que quer.
Fat Charlie pensou sobre o que queria, ali, na pequena sala de jantar da Sra. Dunwiddy. Lá fora a luz do dia gentilmente cedia lugar à noite.
— Ele está tornando a minha vida um inferno — respondeu Fat Charlie. — Eu só quero que vocês façam com que ele vá embora. Mais nada. Vocês podem fazer isso?
As três senhoras mais jovens não disseram nada, apenas olharam para a Sra. Dunwiddy.
— A gente na verdade não pode fazê-lo ir embora — disse ela. — A gente já— — e então se calou. — Bom, a gente fez tudo o que podia.
Devemos dar crédito a Fat Charlie por ele não ter, por mais que quisesse, começado a chorar ou se desmanchar como um suflê que não assou direito. Ele simplesmente assentiu com a cabeça. E disse:
— Bom... Desculpem a chateação. Obrigado pelo jantar.
— A gente não pode mandá-lo embora — repetiu a sra Dunwiddy, com os olhos castanhos parecendo quase pretos por trás de seus óculos de lentes muito grossas. — Mas a gente pode indicar alguém que pode fazer isso.
Era início de noite na Flórida, o que significava que era tarde da noite na Inglaterra. Na grande cama de Rosie, onde Fat Charlie nunca estivera, Spider estremeceu.
Rosie apertou-o contra si, sua pele contra a dele.
— Charles, você está bem? — Ela podia sentir a pele dos braços dele arrepiada.
— Estou. Só uma sensação esquisita, de repente.
— Algum espírito deve ter passado por aqui — brincou ela.
Ele a puxou para si e a beijou.
Daisy estava sentada na pequena sala de sua casa em Hendon, usando uma camisola verde-claro e chinelos felpudos cor-de-rosa. Estava na frente do computador, balançando a cabeça e clicando o mouse.
— Você ainda vai demorar muito? — perguntou Carol. — Sabe, se você deixar, um computador pode fazer esse seu serviço aí, não precisa ser você.
Daisy fez um muxoxo. Não era um ruído que queria dizer sim, muito menos não. Era do tipo eu-sei-que-alguém-acabou-de-falar-comigo-e-se-eu-responder-qualquer-coisa-talvez-a-pessoa-pare-de-me-encher.
Carol já ouvira aquele muxoxo antes. Disse:
— Ei, bunda grande. Você vai demorar muito ainda? Eu preciso postar no meu blog.
Daisy processou as palavras. Duas delas tinham mais peso.
— Você disse que a minha bunda é grande?
— Não — respondeu Carol com seu forte sotaque. — Estou dizendo que está ficando tarde e eu tenho que atualizar o blog. Vou fazer ele transar com uma dessas supermodelos num banheiro de alguma boate de Londres.
Daisy suspirou:
— Tá. E que isso aqui é muito suspeito.
— O quê?
— Um caso de fraude. Eu acho. Pronto, já saí. E todo seu. Mas você sabe que pode se dar mal por se fazer passar por um membro da família real.
— Não enche.
Carol tinha um blog no qual se fazia passar por um membro da família real britânica, um jovem descontrolado. Já havia gente na imprensa discutindo se aquilo era ou não verdade, muitos salientando que a pessoa que escrevia só poderia saber daquelas coisas se fosse mesmo um membro da família real britânica, ou então alguém que tivesse o costume de ler revistas de fofoca.
Daisy saiu da frente do computador pensando nos assuntos financeiros da Agência Grahame Coats.
Grahame Coats dormia profundamente em seu quarto, numa casa grande mas não muito chamativa em Purley. Se houvesse alguma justiça no mundo, estaria gemendo e suando, tendo pesadelos, com a consciência lhe dando ferroadas furiosamente como um escorpião. Portanto é doloroso admitir que Grahame Coats dormia como um bebê cheirando a leite que acabou de mamar muito e não sonhava nada.
Em algum lugar na casa de Grahame Coats, um daqueles relógios grandes, com pêndulo e coluna de madeira, indicou as horas educadamente, 12 vezes. Era meia-noite em Londres. Na Flórida, eram sete da noite.
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