Fat Charlie abriu a boca. E depois fechou.
— Quero que você saia daqui.
— Uma coisa boa para o desejo de um homem é superar-se em algum aspecto, alcançar alguma coisa, sei lá. Do contrário, de que serve o Paraíso? — perguntou Spider entre garfadas do filé de Fat Charlie.
— Mas que diabos você está falando?
— Estou dizendo que não vou a lugar nenhum. Gosto daqui. — Ele espetou outro pedaço de filé, pôs na boca e engoliu.
— Fora! — exclamou Fat Charlie. O telefone tocou. Ele suspirou, foi até o corredor e atendeu, irritado:
— Sim?
— Ah, Charles. Que bom ouvir sua voz. Sei que no momento você está desfrutando o seu honrado dinheiro, mas será que você poderia, dentro das suas possibilidades, aparecer aqui por— humm. meia hora, mais ou menos, amanhã de manhã? Digamos, por volta das dez?
— Sim. Claro. Sem problema.
— Que bom. Preciso que você assine alguns papéis. Bom, então até lá.
— Quem era? — perguntou Spider. Ele já havia limpado o prato e agora enxugava a boca com uma toalha de papel.
— Grahame Coats. Ele quer que eu apareça lá amanhã.
— Ele é um safado.
— E daí? Você também é.
— Um safado de outro tipo. Não é boa gente. Você devia arrumar outro emprego.
— Eu adoro o meu emprego!
Fat Charlie dizia a verdade. Conseguira esquecer por completo o quanto detestava seu trabalho, a Agência Grahame Coats e a presença desagradável de Grahame Coats, que sempre aparecia furtivamente atrás da porta.
Spider levantou-se e disse:
— Excelente filé. Eu coloquei as minhas coisas no seu quarto extra.
— Você o quê?
Fat Charlie correu até o fim do corredor, onde havia um quarto que tecnicamente caracterizava sua residência como um apartamento de dois quartos. O quarto continha diversas caixas de livros, um velho jogo de autorama, uma caixa de metal cheia de carrinhos Hot Wheels (a maioria sem rodas) e diversos outros restos destruídos da infância de Fat Charlie. Talvez fosse um quarto de bom tamanho para um gnomo ou um anão diminuto, mas para qualquer outra pessoa aquilo era um armário com janela.
Ou então era assim que o quarto costumava ser.
Fat Charlie abriu a porta e ficou parado no corredor, piscando.
Havia um quarto, é claro. Isso ainda era verdade. Mas um quarto enorme. Um quarto magnífico. Havia janelas na parede do fundo, enormes janelas que davam para o que parecia uma cachoeira. Por trás dela, o sol tropical estava baixo no horizonte e queimava tudo com sua luz dourada. Havia uma lareira grande o suficiente para assar uns dois bois, na qual a madeira crepitava. Havia uma rede de dormir, de um lado do quarto, ao lado de um sofá absurdamente branco e de uma cama com quatro colunas. Perto da lareira, havia algo que Fat Charlie, que só vira aquilo nas revistas, suspeitava ser um tipo de banheira de hidromassagem. Havia um tapete de zebra e uma pele de urso pendurada numa parede, e também um equipamento moderno de áudio que basicamente consistia num pedaço negro de plástico polido. Numa parede havia uma daquelas TVs de plasma do tamanho do quarto que deveria estar ali. E muito mais.
— O que você fez? — perguntou Fat Charlie. Ele não entrou no quarto.
— Bom, já que eu vou ficar uns dias aqui, pensei em trazer as minhas coisas.
— Suas coisas? “Trazer suas coisas” é trazer umas duas malas de roupa, uns jogos de Play Station e uma planta. Mas isso... isso é...
Ele não tinha palavras.
Spider deu um tapinha no ombro de Charlie enquanto entrava no quarto.
— Se você precisar de mim, estou aqui no meu quarto. — E fechou a porta.
Fat Charlie tentou abrir. Estava trancada.
Foi para a sala da TV, pegou o telefone do corredor e ligou para a Sra.Higgler.
— Quem é que esta ligando a essa hora da manhã? — perguntou ela.
— Sou eu. Fat Charlie. Me desculpe.
— Ce tá ligando por quê?
— Bom, estou ligando para pedir um conselho. É que o meu irmão apareceu.
— O teu irmão?
— Spider. A senhora me falou dele. Você disse para pedir a uma aranha se eu quisesse vê-lo. Eu fiz isso, e ele está aqui.
— Bom — começou ela num tom despreocupado —, isso é ótimo.
— Não, não é.
— Por que não? Ele é da sua família, não é?
— Olha, não posso contar com detalhes agora. Eu só quero que ele vá embora.
— Já tentou falar com ele educadamente?
— Já falamos sobre isso. Ele diz que não vai embora. Montou um quarto que mais parece a arena dos prazeres de Kublai Khan ali no quartinho de despensa, sendo que aqui é preciso permissão até mesmo para colocar vidros anti-ruído na janela. Ele tem uma cachoeira lá. Não lá dentro, do outro lado da janela. E está dando em cima da minha noiva.
— Como você sabe?
— Ele mesmo disse.
— Eu não consigo pensar direito sem tomar café antes.
— Eu só preciso saber como eu faço para ele ir embora.
— Eu não sei — respondeu a Sra. Higgler. — Vou conversar com a Sra. Dunwiddy a respeito.
E desligou.
Fat Charlie foi de novo até o fim do corredor e bateu na porta.
— Que foi dessa vez?
— Quero falar com você.
A porta fez um clique e ficou totalmente aberta. Fat Charlie entrou. Spider estava deitado, nu, dentro da banheira de água quente. Bebia algo que tinha mais ou menos a cor de eletricidade, num copo comprido e gelado. As enormes janelas estavam totalmente abertas, e o barulho da cachoeira contrastava com o jazz lento e líquido que saía das caixas de som ocultas em algum lugar do quarto.
— Olha, você precisa entender que este lugar é a minha casa.
Spider piscou.
— Este lugar? Este lugar aqui é a sua casa?
— Bom, não exatamente. Mas o princípio é o mesmo. Quer dizer, você está no meu quarto extra e você é um hóspede.
Spider tomou um golinho de seu drink e afundou-se confortavelmente na água quente.
— Dizem que hóspedes são como peixes. Começam a feder depois de três dias.
— É um bom argumento.
— Mas é difícil. E difícil quando você passou a vida toda sem ver o seu irmão. Difícil quando ele nem mesmo sabia que você existia. Ainda mais difícil quando você finalmente o encontra e percebe que, para ele, você não vale mais que um peixe morto.
— Mas...
Spider esticou-se na banheira.
— Vou dizer uma coisa: eu não posso ficar aqui pra sempre. Então não esquenta. Vou embora e você nem vai perceber. Da minha parte, jamais pensaria em você como um peixe morto. Entendo que nós estamos passando por uma fase muito estressante. Então não vamos mais falar do assunto. Por que você não sai para almoçar, não vai ao cinema? Não esqueça de deixar a chave de casa.
Fat Charlie pôs o paletó e resolveu sair. Colocou a chave de casa ao lado da pia. O ar fresco estava maravilhoso, embora o dia estivesse cinzento e cuspindo uma garoa fina. Comprou um jornal Parou numa barraquinha e comprou um saco grande de batatas fritas e um salsichão saveloy para o almoço. A chuvinha fina parou. Ele sentou-se num banco em frente a uma igreja, leu o jornal e comeu as fritas e o salsichão.
Estava com muita vontade de ver um filme.
Andou até o Odeon e comprou uma entrada para a primeira sessão que houvesse. Era um filme de ação e aventura, e já tinha começado quando ele entrou. Coisas explodiam. Foi ótimo.
Na metade do filme, ocorreu-lhe que havia algo de que ele não conseguia se lembrar. Estava ali na sua cabeça, em algum lugar, cocando, uns dois centímetros atrás dos olhos, e aquilo distraía sua atenção.
O filme terminou.
Fat Charlie percebeu que, embora tivesse gostado, não conseguia se lembrar muito bem do filme que acabara de ver. Então comprou um saco grande de pipoca e viu tudo de novo. Foi até melhor da segunda vez.
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