— Como fiz antes: cruzando a fronteira. Os orgotas não têm nada contra mim.
— Onde encontraremos um transmissor?
— Não antes de Sassinoth.
Recuei. Ele fez uma careta.
— Não existe nenhum mais perto?
— Cento e cinqüenta milhas mais ou menos, mas já fizemos mais em terreno pior. Há estradas por todo o caminho; as pessoas nos receberão. Podemos pegar uma carona num trenó elétrico.
Concordei mas fiquei deprimido à perspectiva de uma nova retomada de jornada no inverno, e esta não em direção a um abrigo, mas de volta àquela maldita fronteira de onde Estraven poderia retornar ao exílio, deixando-me só.
Fiquei cismando sobre o assunto e disse finalmente:
— Há uma condição que Karhide tem que cumprir antes de se juntar aos ecúmenos. Argaven tem que revogar seu banimento.
Ele não disse nada, ficou contemplando o fogo.
— Estou falando sério — insisti. — Primeiro as coisas mais importantes.
— Agradeço-lhe, Genry — falou. Sua voz quando falava suavemente como agora tinha muito de um timbre feminino, rouca e pouco vibrante. Olhou-me com gentileza, sem sorrir. — Mas eu não esperava rever meu lar por muito tempo ainda. Tenho estado exilado há vinte anos, você sabe. Este banimento não é muito diferente. Cuidarei de mim, você cuide de você e do seu Conselho Ecumênico. Isto você tem que fazer sozinho. Mas ainda é muito cedo para falar nisso. Diga para sua nave baixar! Quando isto estiver feito, então pensarei no que vem depois.
Ficamos ainda dois dias em Kurkurast, alimentando-nos bem e repousando, esperando por um veículo compressor de neve que estava sendo esperado do sul e que nos daria uma carona quando voltasse. Nossos hospedeiros conseguiram que Estraven lhes contasse toda a nossa aventura ao cruzar os gelos. Ele contou como só o sabe contar uma pessoa ligada à tradição da literatura falada; e é assim que ela se torna uma saga, cheia de locuções tradicionais e episódios, e no entanto exatos e vividos, desde o fogo sulfuroso e o passo escuro entre o Drumner e o Dremegole, até as rajadas ululantes do vento que soprava entre as aberturas das montanhas na baía de Guthen; com intervalos cômicos como sua queda na fenda até as experiências místicas quando ele falou dos sons e dos silêncios do gelo, e de quando o tempo e as coisas não tinham sombras ou das trevas profundas da noite. Eu escutava, tão fascinado quanto os demais, meu olhar sem se desviar do rosto sombrio do meu amigo.
Saímos de Kurkurast apertados os três dentro da cabine do compressor de neve, um desses grandes veículos movidos a eletricidade que esmaga e comprime contra o solo a neve acumulada nas estradas de Karhide, o principal meio de conservar as estradas abertas no inverno, pois tentar conservá-las retirando a neve e jogando para o lado tomaria todo o tempo e o dinheiro do reino, e além do mais todo o tráfego, pelo menos no inverno, é feito na base de lâminas como patins colocadas sob os veículos. O compressor trabalha numa média de duas milhas por hora, e assim chegamos na próxima aldeia ao sul de Kurkurast após o anoitecer. Aí, como sempre, fomos bem recebidos, alimentados e abrigados pela noite. No dia seguinte, caminhamos a pé, íamos agora em direção à terra das montanhas costeiras que recebem o impacto do vento norte que desce na baía de Guthen, e já numa região mais povoada, e assim seguíamos de lar em lar. De vez em quando pegávamos uma carona num trenó elétrico, uma vez até por trinta milhas. As estradas, embora nevadas caíssem freqüentemente, estavam bem duras e demarcadas. Havia sempre alimentos na nossa mochila, colocados pelos nossos hospedeiros da noite anterior; havia sempre um teto e fogo para nos abrigar e aquecer ao fim de um dia de andança.
Entretanto, esses nove dias de fácil percurso nos esquis através de uma terra hospitaleira foram os mais duros e melancólicos da nossa jornada, piores que a subida das geleiras, piores que os últimos dias de fome. A saga se acabara, pertencia ao gelo e ao passado. Estávamos muito cansados. Seguíamos em direção errada, não havia mais alegria nos nossos corações.
“Algumas vezes temos que ir contra o movimento da roda”, era a opinião de Estraven. Ele continuava na mesma firmeza, mas pela sua voz, andar, comportamento, o vigor fora substituído pela paciência, e certamente por decisão obstinada. Ele estava muito silencioso, não queria conversa mental comigo.
Chegamos a Sassinoth. Uma cidade de alguns milhares de almas, empoleirada nas vertentes montanhosas que dominam o Ey gelado: brancos tetos, paredes cinza, montanhas com manchas escuras das florestas e formações rochosas protuberantes, campos e rios brancos; através do rio, o disputado vale do Sino th, todo branco…
Chegamos lá quase de mãos vazias. Fôramos deixando a maior parte do nosso equipamento de viagem nas mãos de nossos generosos hospedeiros e agora só tínhamos o fogareiro Chabe, nossos esquis e as roupas que usávamos. Assim, aliviados de carga, procuramos nosso rumo, perguntando a direção a uma porção de pessoas, não da cidade, mas de uma fazenda nos arredores. Era um lugar pobre, não fazia parte de nenhum domínio, mas estava sob a administração do vale. Quando Estraven era um jovem secretário naquela administração, fizera amizade com o proprietário, e na realidade comprara aquela fazenda para o atual proprietário há um ano ou dois, quando estava ajudando o povo a se estabelecer a leste do Ey com a esperança de acalmar a disputa sobre a propriedade do vale. O fazendeiro, ele próprio, abriu-nos a porta; era um robusto homem de fala macia, da idade de Estraven. Seu nome era Thessicher.
Estraven caminhara nesta região com o capuz abaixado, cobrindo as feições. Ele temia que o reconhecessem; mas isto era precaução desnecessária; quem iria se dar ao trabalho de reconhecer Harth rem ir Estraven nessa figura maltrapilha, magra e abatida? Thessicher ficou ali olhando desconfiado, incapaz de acreditar que ele era quem dizia ser.
Levou-nos para dentro e sua hospitalidade estava à altura do padrão que recebêramos, embora fosse de poucos recursos. Mas ele se sentia sem jeito conosco, preferiria não nos ter ali. Era compreensível, ele estava arriscando o confisco de sua propriedade pelo crime de nos ter abrigado. Mas como ele devia esta propriedade a uma generosidade de Estraven e poderia agora estar tão necessitado quanto nós, se ele não o tivesse ajudado então, não parecia desleal pedir-lhe para correr um certo risco, em troco. Meu amigo, no entanto, pedia seu auxílio não como uma retribuição de favor, mas como amizade, não contando com o seu dever, e sim com o seu afeto. Na verdade, Thessicher se acalmou após passar a sua primeira reação de alarme e, com aquela volubilidade de karhideano, tornou-se exuberante e nostálgico, relembrando os velhos tempos e velhas amizades com Estraven ao lado do fogo durante parte da noite. Quando Estraven lhe perguntou sobre um local de esconderijo, alguma fazenda abandonada ou isolada onde um homem banido pudesse ficar por um mês ou dois à espera da revogação da ordem de exílio, Thessicher retrucou imediatamente: “Fique aqui”.
O olhar de Estraven se iluminou ao ouvir isto, mas ponderou; e concordando em que ele não estaria muito em segurança tão perto de Sassinoth, Thessicher prometeu-lhe encontrar um esconderijo. Não seria difícil, falou, se Estraven tomasse um nome falso e trabalhasse como cozinheiro ou ajudante de fazenda; o que não seria agradável, mas certamente melhor do que voltar a Orgoreyn.
— Que diabo vai fazer em Orgoreyn? Vai viver de quê, lá?
— À custa da comensalidade — replicou meu amigo, com um vestígio daquele seu sorriso de lontra. — Eles dão trabalho a todos nas unidades, você sabe. Não há problcmn
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