Um dia, cerca de meio-dia, odorny nimmer, o sexagésimo primeiro da jornada, aquela branquidão em torno começou a deslizar e se encolher. Pensei que meus olhos me enlouqueciam e dei pouca atenção à comoção do ar até que, subitamente, percebi um vislumbre de um apagado sol mortiço sobre nós. E olhando para baixo, na direção do sol, bem na nossa frente, vi uma imensa forma negra surgir do vazio na nossa direção. Tentáculos negros se contorciam para cima, como tentando se agarrar no espaço. Estanquei, bloqueado, nos meus passos, e fiz com que Estraven se contorcesse nos esquis, pois estávamos ambos nos arreios, puxando o trenó. — O que é?!
Ele contemplou aquela monstruosa forma escura escondida na cerração e disse por fim: — Os penhascos! Deve ser o Esherhoth. — E continuou a puxar.
Estávamos a milhas de distância deles, mas eu pensara estarem quase ao alcance de meu braço. À proporção que aquela brancura se transformava em um nevoeiro baixo e espesso que desaparecia gradativamente, pudemos ver os penhascos claramente, antes do pôr-do-sol: grandes pináculos rochosos devastados e corroídos projetando-se para fora do solo, não aparecendo mais do que os icebergs aparecem acima do mar, isto é, montanhas geladas, afogadas, mortas há milênios.
Descobrimos depois que estavam algo ao norte de nossa rota mais curta, se é que podíamos confiar no mapa mal desenhado que possuíamos.
No dia seguinte foi a primeira vez que mudamos nosso rumo um pouco para sudeste.
Sob um céu sombrio e ventoso, mourejamos todo o dia tentando encontrar na visão dos penhascos de Esherhoth uma razão de estímulo e encorajamento,, pois era a primeira coisa que víamos, em sete semanas, diferente de gelo, neve ou céu. Eles estavam assinalados no mapa como vizinhos aos pântanos de Shenshey, em direção sul e a leste da baía de Guthen. Mas este mapa da área do Gobrin não era de merecer todo nosso crédito. E estávamos ficando extenuados.
Percebemos que estávamos mais próximos da região meridional da zona das geleiras, que o mapa indicava pelo reencontro do gelo comprimido e cheio de fissuras, no nosso segundo dia de rumo sul. O solo não estava tão convulsionado quanto na região das montanhas de Fogo, mas era péssimo também. Encontrávamos vastas áreas afundadas, provavelmente o leito de lagos no verão; falsos assoalhos de neve que poderiam se abrir sob os pés, como uma imensa goela, e nos tragar no bolsão de ar que ficava logo abaixo; áreas inteiras cheias de gretas e borbulhas; e cada vez mais freqüentes as grandes fissuras, velhos desfiladeiros abertos no gelo, alguns tão largos como as gargantas entre montanhas e outros de dois a três pés de largura, mas profundos. No odyrny nimmer (pelo diário de Estraven) o sol apareceu depois de um forte vento norte. Enquanto deslizávamos o trenó através de pontes de gelo, sobre estreitas fendas, tanto para a esquerda quanto para a direita, víamos abismos azulados nos quais pedras de gelo deslocadas pelos deslizadores caíam com uma sonoridade delicada, apagada, mas profunda, como se agulhas de prata ressoassem em finas lâminas de cristal, batendo nelas ao cair.
Lembro-me bem do prazer dessa corrida, leve como um sonho, na manhã ensolarada sobre os abismos. Mas o céu começou a embranquecer, o ar tornou-se espesso; sombras desapareceram, também o azul do céu e da neve. Não estávamos preparados para o perigo da frente branca nessa superfície acidentada. Como o gelo estivesse pesadamente ondulado, eu estava empurrando enquanto Estraven puxava; eu tinha os olhos postos no trenó, minha mente concentrada nesse impulso quando, de repente, a barra como que se arrancou violentamente de minhas mãos que a agarravam firmemente e o trenó correu veloz para a frente numa súbita investida. Agarrei-o por instinto e gritei: “Espere!”, para Estraven diminuir a marcha, pensando que ele acelerara ao encontrar um terreno fácil. Mas o trenó deteve-se subitamente, com uma forte inclinação para baixo na sua parte dianteira e Estraven não estava lá. Quase abandonei a barra de direção do trenó para ir procurá-lo. Foi pura sorte eu não o ter feito. Sustentei-o enquanto olhava estupidamente em torno, à sua procura, e foi assim que eu vi a borda de uma fenda, tornada visível pela queda de uma outra seção da ponte de gelo que se quebrara. Ele tinha caído direto, pelos pés, e nada iria impedir o trenó de segui-lo a não ser o meu peso, que sustentou firme a parte traseira dos deslizadores no gelo. Ele continuou deslizando para baixo pela força do peso de Estraven, que estava pendurado pelos arreios na boca do abismo.
Fiz toda a pressão que pude sobre a parte traseira do trenó, puxando, sacudindo violentamente e manobrando como alavanca para tirá-lo da borda do precipício. Ele não veio facilmente. Mas joguei todo o meu peso até que começou relutantemente a se mexer e então deslizou abruptamente da borda. Estraven tinha conseguido firmar suas mãos na borda do precipício e seu peso agora me ajudava. Agarrando-se com mãos e pés e puxado pelos arreios, ele chegou à borda da fissura e estatelou-se de cara no gelo. Ajoelhei-me ao seu lado, tentando desafivelar seus arreios, alarmado pela maneira como ele estava esparramado no chão, como morto, exceto pelo movimento de respiração opressa no seu peito. Seus lábios estavam cianóticos, e um dos lados do rosto arranhado e ferido.
Sentou-se afinal, desequilibrado ainda, e disse num fraco sussurro:
— Tudo azul… azul… torres imensas lá embaixo.
— O quê?
— No abismo. Tudo azul — cheio de luz.
— Você está bem?
Procurou afivelar-se novamente.
— Você vai na frente… com uma corda… e uma bengala. — Ele ofegava. — Vá sondando o caminho.
Assim foi. Por algumas horas nos revezamos, um puxando e outro guiando, tateando o caminho como um gato sobre uma casca de ovo, percutindo o solo a cada passada a ser dada, com antecipação, com a bengala. Nesse ambiente de branco total não se podia ver uma fissura a não ser quando se estava em cima dela, olhando já para o fundo — e então seria tarde, pois as bordas eram íngremes e nem sempre firmes. Cada passada era uma surpresa, uma queda ou um solavanco. Nenhuma sombra. Uma esfera totalmente única, branca: nós nos movíamos no interior de uma imensa bola de vidro gelado. Nada dentro, nada fora. Mas havia rachaduras nesse vidro. Tatear e dar um passo. Tatear e dar um passo. Tatear em busca daquelas rachaduras invisíveis através das quais cairíamos, sempre, sempre, sempre… Uma tensão sem tréguas foi tomando, aos poucos, conta de todos os meus músculos. Tornou-se extremamente penoso dar um passo sequer.
— O que é que há, Genry?
Fiquei lá parado, no meio do nada. Lágrimas brotaram e congelaram minhas pálpebras, fechando-as.
— Tenho medo de cair.
— Mas você está amarrado na corda — disse ele. Veio à frente e vendo que não havia nenhuma fenda visível, percebeu o que se passava e disse:
— Armar acampamento.
— Não está na hora. Temos que continuar.
Mas ele já estava desamarrando a tenda. Mais tarde, após a refeição, disse: — Já era tempo de parar. Não creio que possamos continuar neste rumo. O gelo parece estar caindo em pedaços e estará sempre assim durante todo o percurso. Se pudéssemos ver, estaria bem. Mas não cegados pela brancura.
— Então como vamos chegar aos pântanos?
— Bem, se continuarmos rumo ao leste, em vez de tentar o sul, poderemos atingir um gelo em boas condições perto da baía de Guthen. Eu vi as geleiras uma vez no verão, de barco, na baía. Elas atingem as encostas das montanhas Vermelhas e vão alimentar os rios de gelo, abaixo, que vão até a baía. Se descêssemos uma dessas geleiras poderíamos dar uma corrida para o sul do mar de gelo até Karhide e assim entrar pelo litoral e não por terra, o que talvez seja melhor. Mas isto vai somar algumas milhas a mais -— aproximadamente entre vinte e cinqüenta, assim creio. Qual é a sua opinião, Genry?
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