— Tenho aqui comigo o que me pediram para lhe entregar — falei, e dei-lhe o maço de dinheiro envolto em papel metálico que eu colocara sobre a mesa à sua espera. Apanhou-o e agradeceu discretamente. Permaneci de pé e ele, após instantes, ainda segurando o pacote nas mãos, levantou-se. Minha consciência me incomodava, mas não tentei apaziguá-la. Queria desencorajá-lo de se dirigir a mim, já que para ele isso significava humilhação; era muito penoso.
Olhou-me diretamente nos olhos. Sua estatura era bem menor que a minha; de pernas curtas e compacto, não era nem mesmo da altura das mulheres da minha raça. Entretanto, quando me olhava, não parecia estar me olhando de uma posição mais baixa. Não o encarei; examinei o rádio que estava na mesa com um ar de interesse abstrato.
— Não se pode acreditar em tudo o que se ouve no rádio, por aqui — disse ele de maneira agradável. — Parece-me que em Mishnory você vai precisar receber algumas informações, e conselhos.
— Creio que há um número bem grande de pessoas que desejam fornecê-los.
— E há segurança em números, hein? Dez é um número que inspira mais confiança que 1? Desculpe-me. Não deveria estar falando em karhideano, esqueci-me. — E continuou em orgota: — Homens banidos não devem nunca se expressar na sua língua nativa; sai muito carregada de palavras amargas; e esta língua é mais adequada a traidores, creio. Ela desliza pelos lábios como mel… Sr. Ai, quero agradecer-lhe pela gentileza que teve de nos prestar esse serviço. Tanto para mim como para meu velho amigo e kemmering Ashe Foreth. Em nosso nome eu lhe agradeço e posso retribuir-lhe em forma de um conselho. — Parou. Eu me mantive quieto. Nunca o ouvira proferir essa espécie de cortesia dura, mas elaborada. Não tinha a menor idéia do que isso significava. Ele continuou: — O senhor é, em Mishnory, o que nunca foi em Erhenrang. Lá diziam que o senhor era; aqui eles dirão que o senhor não é. O senhor é o instrumento de uma facção. Eu o aconselho a ter cuidado neste jogo, pela maneira como o estão manobrando. Aconselho-o a descobrir como é a facção inimiga, quem são eles, e nunca deixar que usem sua pessoa, pois eles não vão fazer nada em benefício seu ou de sua missão.
Silenciou. Estava a ponto de lhe pedir para que fosse mais claro quando ele disse:
— Adeus, Sr. Ai. — Voltou-se e saiu.
Fiquei paralisado. O homem era como um choque elétrico — pegava a pessoa totalmente desprevenida. Ele acabara de me tirar toda a satisfação com que havia tomado a minha refeição matinal. Fui até a estreita janela e olhei para fora. A neve tinha rareado um pouco. Era bonito vê-la deslizando pelo ar em flocos brancos, como a queda das pétalas de uma cerejeira em flor nos pomares do meu país natal, quando.o vento primaveril sopra nas verdes encostas de Borland, onde nasci; na Terra, na quente Terra, onde as árvores ficam carregadas de flores na primavera. De repente, fiquei profundamente abatido e saudoso. Dois anos eu já vivera neste maldito planeta e o terceiro inverno já começara antes de o outono ter-se consumado. Meses e meses de um frio incansável, gelado por fora e por dentro até a medula, geadas, gelo, vento, chuva, neve, frio… ali isolado, alienígena, sem uma alma em quem confiar. Pobre Genly! Deveria chorar?
Vi Estraven saindo para a rua, uma figura encorpada e escura de encontro ao cinza-pérola da neve. Seu olhar vagou ao redor; ele ajustou o cinto solto do manto — não usava casaco — e desceu a rua, andando com uma ágil e peculiar graça, uma agilidade em todo o seu ser que lhe dava a aparência de ser a única coisa viva em toda Mishnory.
Retornei ao quarto aquecido. Era confortável mas muito abafado, com o aparelho de calefação, as cadeiras estofadas, a cama recoberta de peles, os tapetes, as cortinas, os abrigos e peliças.
Vesti meu casaco de inverno e saí para dar uma volta e arejar um pouco daquela atmosfera desagradável. Eu teria que almoçar, neste dia, com os comensais Obsle e Yegey e outros que encontrara na noite anterior, e seria apresentado a alguns desconhecidos. Em geral, o almoço é servido numa grande mesa, com as travessas arrumadas; come-se de pé, talvez para não termos a impressão de que passamos o dia todo sentados em torno de uma refeição. Mas esta era uma recepção formal e havia mesas com lugares para se sentar e o cardápio era enorme, com mais de vinte pratos, quentes ou frios, na maioria variações em torno de ovos e pão de maçã. Quando estávamos nos servindo, antes que se formalizasse a etiqueta de boa educação que prescrevia conversa de assuntos leves à mesa, Obsle observou-me:
— O comensal chamado Mersen é um espião de Erhenrang e Gaum é um agente reconhecido do Sarf, você já sabe, não?!
Falava despreocupadamente e riu-se como se tivesse feito uma brincadeira, deixando-me para cuidar de seu prato. Eu não tinha a menor idéia do que fosse o Sarf.
Quando o grupo começou a se sentar à mesa, um jovem aproximou-se do nosso anfitrião e falou-lhe algo discretamente. Yegey voltou-se logo para nós e disse:
— Novas de Karhide: o filho do Rei Argaven nasceu esta manhã e morreu logo a seguir.
Houve uma pausa silenciosa seguida de murmúrios. Então o jovem Gaum, sorrindo ironicamente, ergueu seu caneco de cerveja e fez um brinde:
— Vida longa a todos os reis de Karhide!
Alguns beberam com ele, mas a maioria não o fez.
— Por Meshe! Rir-se da morte de uma criança! — retrucou um velho gordo sentado ao “meu lado, com suas botas altas em torno das coxas, semelhantes a saias, e a fisionomia carregada de desagrado pelo mau gosto do brinde.
Começou-se a discutir quais dos seus filhos por kemmering o Rei Argaven iria escolher como herdeiro, pois ele já passara dos quarenta e não teria mais filhos carnais; por quanto tempo Tibe continuaria como regente, etc. Alguns achavam que a regência terminaria logo, outros duvidavam disso.
— O que pensa disso, Sr. Ai? — perguntou-me Mersen, o tipo que Obsle me identificara como agente de Karhide e, obviamente, uma pessoa da confiança de Tibe. E continuou insistindo: — O senhor acaba de chegar de Erhenrang; o que há de verdade nesses rumores de que Argaven, na realidade, abdicou sem proclamação, entregando as rédeas a seu primo?
— Bem, ouvi rumores também sobre isto.
— Pensa que tenham alguma base concreta?
— Não tenho a menor idéia…
Neste ponto, o anfitrião começou a falar do tempo, pois todos já haviam começado a refeição.
Após os empregados terem retirado os pratos e a montanha de restos de assado e conservas, sentamo-nos todos em torno de uma longa mesa e aí foram servidos pequenos cálices de um licor muito forte — aqua-vita. E passaram a me fazer perguntas.
Desde os meus exames feitos pelos médicos e cientistas de Erhenrang, eu não tinha me defrontado com pessoas tão ansiosas em me fazer perguntas. Poucos karhideanos, mesmo entre os pescadores e fazendeiros com quem passara meus primeiros meses, procuraram satisfazer sua curiosidade, que era intensa, por meio de simples interrogatório. Eles eram introvertidos, indiretos, fechados, não gostavam de perguntas e respostas. Lembrei-me do que Faxe me dissera quanto a respostas… Mesmo os técnicos haviam limitado suas perguntas estritamente ao campo profissional, tais como a fisiologia do meu ser, funções circulatórias e glândulas nas quais eu diferia enormemente do padrão getheniano. Eles nunca chegaram a perguntar, por exemplo, como a sexualidade contínua da minha raça influenciava as instituições sociais e como lidávamos com o nosso kemmer permanente. Escutavam quando lhes falava; os psicólogos ficavam atentos quando lhes informava sobre a comunicação mental, mas nenhum deles chegou a fazer indagações gerais que lhes possibilitassem uma visão adequada do que fosse uma sociedade terrestre ou ecumênica, isto é, com exceção de Estraven.
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