Para Theremon, o segundo grupo de pessoas levemente desequilibradas que vagavam na floresta constituía uma ameaça bem mais urgente. Eram aqueles que se haviam libertado de todas as barreiras sociais. Eram os bandidos, os assaltantes, os psicopatas, os maníacos homicidas: aqueles que se esgueiravam com facas desembainhadas pelas veredas silenciosas da floresta, atacando quando sentiam vontade, roubando o que queriam, matando os que tinham a desventura de irritá-los.
Como todos estavam com um brilho estranho nos olhos, fosse de cansaço, de tristeza ou de loucura, era difícil avaliar, apenas olhando para uma pessoa, se ela era perigosa ou não. Ao cruzar com alguém, não havia meio de saber se ela pertencia à classe dos loucos deprimidos ou abobalhados e, portanto, inofensivos, ou do tipo que estava possuído por uma fúria assassina e, portanto, seria capaz de atacar, sem nenhuma razão, a primeira pessoa que encontrasse.
Assim, era preciso tomar cuidado com encontros fortuitos na floresta. Qualquer estranho podia ser uma ameaça. Você podia estar conversando amigavelmente com alguém sobre o que ambos haviam sentido na noite do eclipse, e, de repente, ele se ofendia com algum comentário inocente, se interessava por uma peça do seu vestuário ou simplesmente chegava à conclusão de que não ia com a sua cara… e, soltando um rugido animal, pulava no seu pescoço, com uma fúria insana.
Alguns desses indivíduos, com certeza, já eram criminosos antes do eclipse. O colapso da sociedade apenas os deixara livres para agir. Outros, porém, pensava o jornalista, deviam ter sido cidadãos pacatos até suas mentes serem afetadas pelas Estrelas. Então, de repente, perderam todas as inibições da vida civilizada. Esqueceram as próprias regras que tomavam possível a vida civilizada. Eram como crianças pequenas de novo, egoístas, preocupadas apenas com as próprias necessidades… mas com a força de adultos e a persistência dos insanos.
A única saída era evitar todas as pessoas suspeitas. A única saída era rezar para que os maníacos homicidas se aniquilassem mutuamente nos primeiros dias, deixando o mundo seguro para os menos predatórios.
Theremon teve três encontros com os loucos desta segunda terrível categoria nos primeiros dois dias. O primeiro, um homem alto e magro, com um sorriso diabólico, que estava parado na margem de um regato que Theremon pretendia atravessar, exigiu que o jornalista pagasse pedágio.
— Seus sapatos, digamos. Ou que tal o relógio?
— Que tal você sair da frente? — sugeriu Theremon. Foi o suficiente para deixar o homem possesso.
Brandindo um porrete que Theremon não havia notado até o momento, ele soltou uma espécie de grito de guerra e investiu sobre o repórter. Não havia tempo para recuar, tudo que Theremon pôde fazer foi se abaixar no momento em que o homem desferia um golpe violentíssimo na direção de sua cabeça.
Theremon ouviu o porrete passar zunindo a milímetros de sua cabeça. A arma se chocou com uma árvore. O impacto foi tão forte que machucou o braço do atacante, e ele ofegou em pânico, enquanto o porrete escapava de seus dedos nervosos.
Antes que o homem tivesse tempo de se recuperar, o jornalista torceu-lhe o braço machucado com toda a força, fazendo-o cair de joelhos, gemendo. Theremon empurrou a cabeça do homem até mergulhá-la no regato e esperou. Esperou. Esperou.
Como seria simples, pensou Theremon, admirado, manter a cabeça do homem debaixo d’água até que ele se afogasse. Na verdade, uma parte do seu ser era francamente a favor da ideia. Ele teria matado você sem pestanejar. Livre-se dele. Que vai fazer, se o soltar? Brigar com ele de novo? E se ele começar a segui-lo para tentar vingar-se?
Acabe o serviço, Theremon. Acabe o serviço.
Era uma forte tentação. Entretanto, apenas uma parte de Theremon se havia adaptado à nova moralidade da selva.
A outra parte se sentia repugnada com a ideia. Afinal, ele soltou o homem e recuou. Apanhou o porrete e ficou esperando. O homem, porém, parecia ter desistido totalmente da briga. Endireitou o corpo, tossindo, com a água escorrendo da boca e das narinas, e sentou-se, trêmulo, na margem do córrego, lutando para respirar. Olhou para o repórter com uma mistura de raiva e medo, mas não fez menção de se levantar, e muito menos de atacá-lo.
Theremon atravessou o regato e se internou na floresta, andando rápido, sem olhar para trás.
Os efeitos do que quase havia feito levaram quase dez minutos para se manifestar. De repente, parou, suando frio, e foi sacudido por um ataque de vômitos tão violento que levou muito tempo para seguir caminho.
Naquela mesma tarde, descobriu que suas andanças o tinham levado à orla da floresta. Quando olhou por entre as árvores, viu uma estrada, totalmente sem movimento, e, do outro lado da estrada, as ruínas de uma construção de tijolo, no meio de uma praça.
Reconheceu o edifício. Era o Panteão, a Catedral de Todos os Deuses.
Não havia restado muita coisa. Atravessou a estrada e ficou olhando para os destroços, admirado. Parecia que o incêndio tinha começado no coração do edifício (que é que eles haviam feito, posto fogo nos bancos da igreja?) e subido pela torre estreita que ficava acima do altar, consumindo as vigas de madeira. A torre havia desabado, levando com ela as paredes. Os tijolos estavam espalhados por toda a praça. Theremon viu alguns cadáveres no meio dos escombros.
O repórter nunca tinha sido um homem religioso. Como todo mundo, às vezes dizia coisas como “Meu Deus” ou “Céus!” ou “Deus do céu!”, mas a ideia de que pudesse haver um deus, ou vários deuses, sempre lhe parecera totalmente irrelevante. A religião, para ele, era uma coisa arcaica. Uma vez ou outra, entrava em uma igreja para assistir ao casamento de um amigo (tão incrédulo quanto ele, é claro) ou para fazer a cobertura de algum rito oficial para a Crônica, mas não entrava em uma igreja para rezar desde a sua crisma, quando tinha dez anos de idade.
Mesmo assim, a visão da catedral destruída o deixou profundamente abalado. Estivera presente à inauguração da igreja, fazia uns doze anos, quando era um repórter novato. Sabia quantos milhões de créditos custara aquele edifício, conhecia as admiráveis obras de arte que abrigava; a execução do Hino aos Deuses, de Ghissimal, naquela majestosa nave, o deixara arrepiado. Embora não acreditasse no sobrenatural, tinha que admitir que se havia um lugar em Kalgash que os deuses frequentariam, este lugar era a catedral.
E os deuses haviam deixado que aquele lugar fosse destruído! Os deuses haviam enviado as Estrelas, sabendo que a loucura provocada por elas causaria a destruição do Panteão!
O que significava aquilo? Que era impossível compreender os desígnios dos deuses… supondo, é claro, que eles existissem?
— Socorro — chamou uma voz.
O débil apelo interrompeu a meditação de Theremon. Ele olhou em torno.
— Aqui. Aqui.
À esquerda. Isso mesmo. Theremon viu um homem da veste dourada, iluminada pelo sol. Um homem meio enterrado nos escombros, perto da lateral da igreja. Um dos sacerdotes, a julgar pelos trajes. Estava preso pela cintura por uma pesada viga e gesticulava para o repórter com visível esforço, Theremon caminhou naquela direção. Antes, porém, que tivesse tempo de dar mais do que uma dúzia de passos, uma segunda pessoa apareceu nos fundos da igreja e se aproximou. Era um homem magro, que pulava por cima dos tijolos com muita agilidade e corria na direção do padre.
Ótimo, pensou Theremon. Juntos, talvez consigamos levantar aquela viga.
Entretanto, quando o repórter chegou a uns dez metros de distância, parou, horrorizado. O homenzinho ágil tinha alcançado primeiro o local onde estava o sacerdote.
Curvando-se, cortou-lhe a garganta com uma pequena faca, tão casualmente como se estivesse abrindo um envelope, depois, começou a cortar as cordas que seguravam a rica veste no lugar.
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