Suas costas estavam doloridas, a perna esquerda estava toda arranhada, e o lado do rosto estava coberto de sangue coagulado. A dor generalizada que sentira nas primeiras horas dera lugar a dores localizadas que se irradiavam de uma dúzia de lugares diferentes no seu corpo.
Que acontecera? Onde estivera?
Lembrava-se da batalha no Observatório. Gostaria de poder esquecer. Aquela horda de indivíduos tresloucados, arrombando a porta… havia alguns Apóstolos com eles, mas a maioria eram pessoas normais, gente simples e generosa, que havia passado a vida fazendo as coisas simples e generosas, que mantinham a civilização funcionando. Agora, de repente, a civilização deixara de funcionar e todas aquelas pessoas comuns se haviam transformado, em um piscar de olhos, em maníacos homicidas.
O momento em que invadiram o Observatório tinha sido horrível. Destruíram as câmaras que acabavam de registrar o eclipse, arrancaram o tubo do grande solarscópio do teto do edifício, jogaram no chão os terminais de computador…
Athor subiu em uma cadeira, como um semideus, e ordenou-lhes que se retirassem! Era como tentar deter as vagas do oceano.
Beenay lembrava de implorar a Athor que fosse com ele, que fugisse enquanto ainda era possível. “ Largue-me, rapaz!”, dissera Athor, como se mal o conhecesse. “Tire as mãos de mim! “ Foi então que Beenay se deu conta de que o diretor perdera a razão, e que a pequena parte da mente de Athor que ainda funcionava racionalmente ansiava pela morte. O que restava de Athor havia perdido toda a vontade de sobreviver, de entrar no mundo inóspito do barbarismo pós-eclipse. Era o mais trágico de tudo, pensou Beenay: a destruição da vontade de viver de Athor, a rendição do grande astrônomo diante do holocausto da civilização.
Em seguida, a fuga do Observatório. Era a última coisa de que Beenay se lembrava claramente. Depois de ver Athor desaparecer no meio de um bando de invasores, ganhara o corredor, conseguira chegar à saída de emergência, chegara ao estacionamento nos fundos do prédio… Onde as Estrelas esperavam por ele com toda a sua terrível majestade. com extrema inocência, ou talvez uma autoconfiança que beirava a arrogância, Beenay havia subestimado totalmente o poder das Estrelas. No momento em que apareceram, estava ocupado demais com seus instrumentos para se deixar afetar, limitara-se a registrá-las como um fenômeno notável, a ser examinado com detalhes quando as circunstâncias permitissem, e continuara a fazer o que estava fazendo. Ali, porém, ao ar livre, a visão das Estrelas o atingiu com todo o seu impacto.
Ficou boquiaberto. A luz fria e implacável daqueles milhares de sóis desceu sobre ele, fazendo-o cair de joelhos. Arrastou-se pelo chão, trêmulo de medo, respirando com dificuldade. As mãos se crisparam, o coração começou a palpitar, o rosto afogueado ficou coberto de suor. Quando algum vestígio do cientista que havia sido o compeliu a voltar a cabeça para a colossal massa prateada, para que pudesse examiná-la, analisá-la e registrá-la, não conseguiu manter os olhos abertos por mais que um ou dois segundos.
Lembrava-se do esforço que fizera para observar as Estrelas, e também da derrota que sofrera. Depois disso, era tudo muito vago. Passara um dia ou dois vagando na floresta. Vozes à distância, risos, gente cantando. Um clarão avermelhado no horizonte, o cheiro de fumaça em toda parte. Ajoelhara-se para lavar o rosto em um regato. Lembrava-se do contato da água fria com a pele. Tinha sido cercado por um bando de pequenos animais. Não deviam ser selvagens, e, sim, animais de estimação que haviam fugido da cidade. Rugiam para ele como se quisessem fazê-lo em pedaços.
Arrancara frutinhas silvestres de um arbusto. Subira em uma árvore para colher frutos dourados, mas perdera o equilíbrio e desabara no chão, com um baque desastroso.
Levara algumas horas para se levantar.
Uma briga inesperada, na parte mais escura da floresta: punhos cerrados, cotovelos ossudos, pontapés a esmo, gritos bestiais, o rosto de um homem muito próximo do seu, os olhos vermelhos, os dois rolando pelo chão. Suas mãos encontrando uma pedra providencial, desferindo um único e certeiro golpe.
Horas. Dias. Um torpor febril.
Depois, na manhã do terceiro dia, a memória de quem ele era, do que acontecera. A preocupação com Raissta, sua companheira oficial. A lembrança de que prometera procurá-la no Abrigo logo que terminasse o trabalho no Observatório.
O Abrigo… onde ficava o Abrigo?
A mente de Beenay já estava recuperada o bastante para que ele se lembrasse de que o refúgio dos funcionários da universidade ficava a meio caminho entre o campus e a cidade de Saro, em uma região descampada. O velho acelerador de partículas do departamento de física ficava ali, em uma grande câmara subterrânea, que tinha sido abandonada alguns anos antes, quando construíram o novo centro de pesquisa em outro local. Não tinha sido difícil adaptar as instalações para que servissem de habitação temporária para algumas centenas de pessoas. Como o prédio do acelerador era todo fechado, por razões de segurança, não havia perigo de que fosse invadido por habitantes da cidade enlouquecidos por causa do eclipse.
Entretanto, para poder chegar ao Abrigo, Beenay tinha que descobrir primeiro onde ele estava. Fazia mais ou menos dois dias que vagava sem rumo, talvez mais. Podia estar em qualquer lugar.
Algum tempo depois, encontrou a saída da floresta, quase por acidente, e se viu no que havia sido um elegante bairro residencial. Estava deserto agora, mas os sinais de tumulto eram evidentes: carros abandonados no meio da rua, corpos estirados no chão, cercados por enxames de moscas. Não havia nenhum sinal de vida.
Passou a manhã caminhando por uma comprida rua de subúrbio, ladeada por casas enegrecidas e abandonadas, sem descobrir nenhum indício que revelasse a sua localização.
Ao meio-dia, quando Trey e Patru nasceram, entrou em uma casa que estava com a porta escancarada e se serviu da comida que ainda não havia estragado. Não saía água da torneira da cozinha, mas encontrou garrafas de água mineral no porão e bebeu à vontade. Usou a água que sobrou para se lavar.
À tarde, subiu por uma rua tortuosa até uma colina coberta por mansões, todas elas queimadas até os alicerces. Não restava nada da casa que ficava no alto da colina, a não ser uma varanda decorada com lajotas azuis e cor-de-rosa, que na certa devia ter sido muito bonita, mas agora estava cheia de detritos negros espalhados por sua superfície lustrosa. Chegou com dificuldade ao parapeito da varanda e olhou para o vale lá embaixo.
O ar estava parado. Não havia aviões no céu, nem automóveis nas ruas. Um silêncio sepulcral tomara conta de tudo. De repente, Beenay percebeu onde estava, e tudo começou a fazer sentido.
A universidade estava visível à esquerda, um aglomerado de construções de tijolo aparente, muitas delas agora manchadas de preto e algumas também destruídas. Mais além, em um promontório, ficava o Observatório. Beenay olhou para ele rapidamente e desviou os olhos, grato pelo fato de os estragos não serem visíveis àquela distância.
À direita, ao longe, estava a cidade de Saro, brilhando à luz do sol. A olho nu, parecia quase intacta. Beenay sabia, porém, que se dispusesse de um par de binóculos, poderia ver as janelas quebradas, as casas incendiadas, os destroços ainda fumegantes, todas as cicatrizes da conflagração provocada pelo Cair da Noite.
Bem abaixo de onde se encontrava, entre a cidade e o campus, estava a floresta na qual vagara durante os dois dias de delírio. O Abrigo ficava exatamente na outra extremidade da floresta, talvez tivesse passado, sem saber, quase pela porta.
A ideia de atravessar de novo a floresta não lhe agradava nem um pouco. com certeza, ainda estava cheia de loucos furiosos, animais famintos e outros perigos. Dali de cima, porém, podia ver a estrada que cortava a floresta e as ruas que levavam à estrada. Não saia das ruas pavimentadas, disse para si mesmo, e tudo estará bem.
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