— Só um pouquinho — disse Sheerin, em tom pesaroso. — Depois, saí correndo e me escondi… Escute, rapaz, temos que sair daqui.
— Primeiro, preciso tentar encontrar Faro.
— Se ele sobreviveu, já deu o fora daqui. Se não, não há nada que você possa fazer.
— E se estiver debaixo de uma dessas pilhas de corpos?
— Não pense nisso — disse Sheerin. — Você não pode sair por aí remexendo as pessoas. As que estão vivas ainda estão atordoadas, mas se você provocá-las é impossível adivinhar o que farão. O mais seguro é sair daqui o mais depressa possível. Vou tentar chegar ao Abrigo. Se você for esperto, virá comigo.
— Mas Faro…
— Está bem — disse Sheerin, com um suspiro. — Vamos procurar Faro. Vamos procurar também Beenay, Athor, Theremon e os outros.
Mas era inútil. Durante dez minutos, examinaram as pessoas mortas, inconscientes e semiconscientes que se amontoavam no saguão; nenhuma delas, porém, tinha qualquer ligação com a universidade. Quase todas tinham as feições horrivelmente distorcidas pelo medo e pela loucura. Algumas davam sinais de vida quando eram tocadas e começavam a babar e revirar os olhos. Uma tentou agarrar o machado de Sheerin, o psicólogo teve que empurrá-la com o cabo para livrar-se. Era impossível subir a escada para examinar o primeiro andar; a escada estava bloqueada pelos corpos inertes, e havia pedaços de reboco em toda parte.
O chão estava cheio de poças de água lamacenta. O cheiro de fumaça era insuportável.
— O senhor tinha razão — disse Yimot, afinal. — Vamos embora.
Sheerin foi o primeiro a sair do prédio, para a luz do sol. Depois de tudo que havia passado, o dourado Onos era a visão mais linda do universo, embora os olhos do psicólogo não estivessem preparados para tanta luz depois de passarem horas na Escuridão. Teve que parar e esperar que seus olhos se acomodassem. Depois de algum tempo, sua visão voltou, e o que viu o deixou perplexo.
— É horrível! — exclamou Yimot, a seu lado.
Mais cadáveres. Loucos vagando em círculos, murmurando palavras desconexas. Veículos queimados e abandonados no acostamento da estrada. Árvores e arbustos arrancados. Ao longe, uma grossa nuvem de fumaça marrom pairando sobre as torres da cidade de Saro.
Caos, caos, caos.
— Então é assim que é o fim do mundo! — disse Sheerin. — E aqui estamos, eu e você. Sobreviventes. — Começou a rir com amargura. — Formamos uma bela dupla! Eu, com cinquenta quilos a mais, você, com cinquenta quilos a menos. Mas ainda estamos vivos. Será que Theremon também escapou? Se eu tivesse que apostar em alguém para sobreviver, apostaria nele, e não em mim ou em você. O Abrigo fica a meio caminho entre o Observatório e a cidade de Saro. Se não houver nenhum problema no caminho, poderemos chegar lá, a pé, em menos de meia hora. Tome, leve isto corri você.
Pegou um grosso porrete que estava no chão, ao lado de um dos cadáveres, e jogou-o para Yimot, que o segurou meio sem jeito e ficou olhando para ele, como se não soubesse o que era.
— Que espera que eu faça com isso? — perguntou, afinal.
— Finja que vai usá-lo no crânio de qualquer um que nos tente assaltar. Assim como estou fingindo que usaria este machado para me defender. Sabe de uma coisa? Usarei, se for preciso. O mundo mudou, Yimot. Venha comigo. E tenha cuidado.
A Escuridão ainda envolvia o mundo, as Estrelas ainda inundavam Kalgash com seus diabólicos raios de luz quando Siferra 89 saiu, cambaleante, do devastado prédio do Observatório. Entretanto, uma leve luminosidade cor-de-rosa começava a aparecer, a leste, no horizonte; o primeiro sinal esperançoso de que os sóis estavam voltando ao céu.
Ficou parada no jardim do Observatório, com as pernas bem afastadas, a cabeça jogada para trás, respirando fundo. Sentia-se confusa. Não fazia ideia de quantas horas tinham se passado desde que o céu ficara escuro e as Estrelas nele irromperam, como uma salva de um milhão de clarins. Vagara a noite inteira pelos corredores do Observatório, sem conseguir encontrar a saída, tropeçando nos malucos que apareciam de todos os lados. Não parara para pensar que talvez também tivesse perdido o juízo. Estava preocupada apenas em sobreviver, em desvencilhar-se das mãos que tentavam agarrá-la, em defender-se de golpes de porrete com um porrete que arrancara das mãos de um homem caído, em esquivar-se do tropel de maníacos que atravessavam os corredores em grupos de seis ou oito, derrubando tudo que encontravam no caminho.
Tinha a impressão de que havia mais de um milhão de estranhos à solta no interior do Observatório. Para qualquer lugar que olhasse, via rostos contorcidos, olhos esbugalhados, bocas abertas, mãos crispadas de monstruosas garras.
Estavam quebrando tudo. Não fazia ideia de onde estava Beenay, de onde estava Theremon. Lembrava-se vagamente de ter visto Athor no meio de dez ou vinte histéricos encapuzados, sua vasta cabeleira branca acima deles. Depois, o diretor fora derrubado no chão e ela o perdera de vista.
Fora isso, Siferra não se lembrava mais de nada com clareza. Durante o resto do eclipse, correra para cá e para lá pelos corredores, como um rato em um labirinto. Não conhecia bem o interior do Observatório, mas mesmo assim teria saído do edifício sem muita dificuldade, se estivesse normal. Naquele momento, porém, com as Estrelas espreitando sem piedade em cada janela, era como se uma picareta tivesse sido cravada em seu cérebro. Não conseguia pensar. Não conseguia pensar. Não conseguia pensar.
Tudo que podia fazer era correr sem destino, abrindo caminho entre os invasores tresloucados, em uma busca inútil e desesperada de uma das saídas principais. Isso se prolongou por várias horas, como se estivesse sendo vítima de um pesadelo interminável.
Agora, finalmente, estava do lado de fora. Não sabia como havia chegado lá. De repente, estava diante de uma porta, em um corredor que, com certeza, havia explorado mil vezes nas últimas horas. Empurrou a porta, a porta cedeu, uma brisa de ar fresco acariciou a sua pele, e ela saiu do prédio, cambaleante.
A cidade estava em chamas. Podia ver o fogo à distância, uma furiosa mancha vermelha no horizonte.
Ouviu gritos, soluços, risos histéricos, vindo de todos os lados.
Um pouco abaixo de onde se encontrava, na encosta da colina, alguns homens estavam derrubando uma árvore, puxando-a pelos galhos, arrancando as raízes do solo. Não via nenhum motivo para aquele ato de destruição. Provavelmente nem eles sabiam por que estavam fazendo aquilo.
No estacionamento do Observatório, outros intrusos estavam virando os carros de rodas para o ar. Siferra imaginou se algum daqueles carros seria o dela. Não se lembrava. Não se lembrava de muita coisa. Até para se lembrar do próprio nome, tinha que se concentrar.
— Siferra — disse, em voz alta. — Siferra 89. Siferra 89. Gostou do som. Era um nome bonito. Tinha sido o nome da mãe… ou o nome da avó, talvez. Não tinha certeza.
— Siferra 89 — repetiu. — Meu nome é Siferra 89. Tentou lembrar-se do endereço de sua residência. Nada feito. Um monte de números sem sentido.
— Olhe para as Estrelas! — gritou uma mulher que passou correndo. — Olhe para as Estrelas e morra!
— Não — respondeu Siferra, calmamente. — Não quero morrer.
Assim mesmo, olhou para as Estrelas. Estava quase se acostumando com elas. Eram como luzes intensas, muito intensas, tão próximas no céu que pareciam se misturar, formando uma massa brilhante, uma espécie de manto prateado que ia de horizonte a horizonte. Quando olhava por mais que um segundo ou dois, conseguia ver alguns pontos luminosos, mais fortes do que os outros, pulsando com estranho vigor. Mas o melhor que conseguia era observá-las por cinco ou seis segundos; depois, a força de toda aquela luz pulsante a subjugava, fazendo seu cabelo ficar em pé e o sangue lhe subir ao rosto. Era então forçada a baixar os olhos e esfregar com força o ponto dolorido entre os olhos.
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