— Quem sabe ele se converteu? — disse Theremon. E acrescentou, depois de uma pausa sugestiva: — O que sei é que ele e seu grupo conseguiram alguns dados que apoiam a crença de vocês de que a Escuridão vai destruir o mundo no próximo dia 19 de Theptar.
Folimun se permitiu uma ligeira demonstração de interesse, um quase imperceptível levantar de sobrancelha.
— Seria fascinante, se fosse verdade — disse, calmamente.
— Terá que conversar pessoalmente com ele Para se convencer de que estou falando sério.
— Pode ser que eu faça isso — declarou o Apóstolo.
E de fato fez. Theremon jamais conseguiu descobrir exatamente como tinha sido a conversa entre Folimun e Athor. Não havia testemunhas do encontro, e os dois foram extremamente evasivos. Beenay, a principal ligação de Theremon com o Observatório, pôde oferecer apenas vagos palpites.
— Teve algo a ver com os velhos registros astronômicos que o chefe acredita que estejam de posse dos Apóstolos afirmou Beenay. — Athor desconfia que eles vêm passando essas informações de geração em geração durante vários séculos, talvez mesmo antes do último eclipse. Alguns trechos do Livro das Revelações foram escritos em uma língua desconhecida, você sabe.
— Quem garante que seja uma língua? Pode ser que não passem de uma série de palavras sem nexo.
— Eu, com certeza, não garanto. Mas alguns filólogos de renome acreditam que as passagens podem ter sido escritas em uma língua antiga — disse Beenay. — E se os Apóstolos souberem traduzir essa língua? Pode ser que eles guardem esse conhecimento em segredo, escondendo assim dos que não estão iniciados os dados astronômicos que podem ter sido registrados no Livro das Revelações. Talvez seja isso que Athor esteja procurando.
Theremon parecia indignado.
— Está querendo dizer que o astrônomo mais famoso do nosso tempo, talvez o mais famoso de todos os tempos, precisa do apoio de um bando de religiosos histéricos para sua teoria científica?
— Tudo que sei, Theremon, é que, como eu e você, Athor não morre de amores pelos Apóstolos e sua doutrina, mas, mesmo assim, gostaria de conversar com seu amigo Folimun.
— Ele não é meu amigo! Minhas relações com ele são puramente profissionais!
— Seja como for… — começou Beenay.
Theremon interrompeu-o. Surpreendeu-se ao se dar conta de que estava realmente ficando irritado.
— Fique sabendo que, na minha opinião, vocês não deviam fazer nenhum tipo de trato com os Apóstolos. Para mim, eles representam a própria Escuridão. São a seita mais reacionária, mais retrógrada, mais obscurantista que conheço. Já basta que psicóticos como eles comecem a espalhar profecias delirantes para perturbar a tranquilidade dos cidadãos comuns. Se um homem com o prestígio de Athor resolver apoiar essas previsões apocalípticas, incorporando parte da doutrina dos Apóstolos a suas teorias científicas, vou começar a encarar com muita suspeita, meu amigo, tudo que sair do seu Observatório daqui em diante.
O rosto de Beenay revelava a sua preocupação.
— Se você soubesse, Theremon, como Athor fala com desprezo dos Apóstolos…
— Nesse caso, por que quer se encontrar com eles?
— Você mesmo não foi falar com Folimun?
— Isso é diferente. Certos ou não, os Apóstolos são notícia. Faz parte do meu trabalho descobrir o que pretendem.
— Pode ser que Athor pense da mesma forma — argumentou Beenay.
Foi nessa altura que decidiram encerrar a discussão. Ela estava ameaçando se transformar em uma briga, coisa que nenhum dos dois queria. Como Beenay de fato não tinha nenhuma ideia do tipo de entendimento a que Athor e Folimun pudessem ter chegado, Theremon não via nenhuma razão para insistir no assunto.
Mais tarde, porém, Theremon se deu conta de que tinha sido depois daquela conversa com Beenay que sua atitude com relação a Beenay, Sheerin e o resto do pessoal do Observatório começara a mudar. De um espectador simpático e curioso, transformara-se em um crítico impiedoso. Embora ele próprio tivesse ajudado a promover o encontro do diretor do Observatório com o Apóstolo, esse encontro agora lhe parecia uma rendição da pior espécie, uma capitulação ingênua por parte de Athor às forças da ignorância cega.
Embora jamais tivesse realmente chegado a acreditar nas teorias dos cientistas, apesar das supostas “provas” que lhe foram oferecidas, Theremon assumira uma posição neutra na sua coluna quando as primeiras notícias a respeito do eclipse começaram a aparecer na Crônica.
“É uma previsão notável”, escrevera ele, “e também assustadora — se verdadeira. Como afirma Athor 77, e com toda razão, uma Escuridão em escala mundial poderia levar a uma catástrofe de dimensões incalculáveis. Esta manhã, porém, do outro lado do mundo, uma voz discordante se fez ouvir. “Com todo o respeito pelo grande Athor 77”, declarou Heranian 1104, Astrônomo Real do Observatório Imperial de Kanipilitiniuk, “ainda não existem provas concretas da existência do astro chamado Kalgash Dois e muito menos de que esse astro seja capaz de causar um eclipse como o que foi previsto pelo grupo de Saro. Não devemos nos esquecer de que os sóis, mesmo um sol pequeno como Dovim, são necessariamente muito maiores do que qualquer corpo sem luz própria, como o suposto satélite. Considero extremamente improvável que um satélite possa bloquear por completo a luz de qualquer dos nossos sóis ……
Pouco depois, porém, veio o discurso de Mondior 71, no dia treze de Umilithar, no qual o Sumo Apóstolo declarou com orgulho que o maior astrônomo do mundo havia confirmado as palavras do Livro das Revelações. “A voz da ciência e a voz do céu agora são uma única voz”, dissera Mondior. “Em verdade eu vos digo: não depositeis vossa esperança em sonhos e milagres. O que tem que ser, será. Nada pode salvar o mundo da ira dos deuses, nada exceto o desejo sincero de renunciar ao pecado e à maldade e voltar ao caminho do bem e da virtude. ”
O pronunciamento bombástico de Mondior pusera fim à neutralidade de Theremon. Em consideração à amizade de Beenay, ele se esforçara para levar a sério a hipótese do eclipse. Agora, porém, começava a vê-la com outros olhos. Parecia que um grupo de cientistas, deixando-se levar pelo próprio entusiasmo e por uma série de coincidências e provas circunstanciais, estava apoiando a teoria mais absurda e sensacionalista da história da ciência.
No dia seguinte, a coluna de Theremon comentava: “O leitor deve estar se perguntando, como eu: como foi que os Apóstolos do Fogo conseguiram o apoio de Athor 77?
De todas as pessoas do mundo, o velho astrônomo deveria ser a última a concordar com as alegações pouco científicas daqueles fanáticos. Será que algum Apóstolo muito persuasivo conseguiu convencer o mestre com seus argumentos? Ou será simplesmente o caso, como andam cochichando atrás dos muros cobertos de hera da Universidade de Saro, de alguém que continuou na ativa quando já devia ter sido aposentado há algum tempo?
E aquilo foi apenas o começo.
Theremon agora sabia qual era o seu dever. Se as pessoas começassem a levar a sério aquela história de eclipse, os casos de colapso nervoso se multiplicariam, mesmo sem a Escuridão para provocá-los.
Se todos acreditassem que o mundo iria realmente acabar no dia 19 de Theptar, haveria pânico nas ruas muito antes daquela data, histeria universal, um colapso da lei e da ordem, um período prolongado de instabilidade e apreensão generalizada, seguidos por sabe lá que tipo de convulsão social, quando o dia temido passasse sem que nada acontecesse. Ele, como jornalista, tinha o dever de neutralizar o medo do Cair da Noite, da Escuridão, do Fim do Mundo, submetendo-o à lança afiada do ridículo.
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