Athor fez um muxoxo.
— Você quer dizer as suas?
— Claro que sim! — respondeu Theremon, sentando-se na cadeira mais confortável da sala e cruzando as pernas. Meus artigos podem ter sido um pouco agressivos, mas, sempre que possível, concedi à sua equipe o benefício da dúvida. Afinal de contas, Beenay é meu amigo. Foi através dele que fiquei sabendo o que estão fazendo aqui. O senhor deve lembrar-se que no começo encarei a pesquisa deste Observatório com muita simpatia. O que não compreendo, Dr. Athor, é como o senhor, um dos maiores cientistas de nossa história, pode voltar as costas ao fato de que o século atual representa o triunfo da razão sobre a superstição, dos fatos sobre as fantasias, do conhecimento sobre o medo. Os Apóstolos do Fogo são um anacronismo absurdo. O Livro das Revelações é um amontoado de bobagens infantis. Todas as pessoas inteligentes, todas as pessoas modernas, sabem disso. Por isso, as pessoas ficam surpresas, e até mesmo irritadas, quando os cientistas mudam de ideia e declaram que o que esses fanáticos estão pregando é verdade. Eles…
— Não me venha com essa — protestou Athor. — Embora parte dos nossos dados tenha sido fornecida pelos Apóstolos, nossas conclusões nada têm a ver com o seu misticismo. Fatos são fatos, e a chamada mitologia dos Apóstolos realmente se baseia em certos fatos. Não pense que esta descoberta nos trouxe prazer. Mas procuramos colocar as coisas nas devidas proporções e fizemos o possível para separar as advertências dos Apóstolos quanto a um desastre iminente, que consideramos legítimas, de seu programa absurdo para transformar e “reformar” a sociedade. Asseguro-lhe que os Apóstolos me odeiam ainda mais do que o senhor.
— Não odeio o senhor. Estou apenas tentando explicar-lhe que o público está de mau humor. Eles estão zangados.
Athor torceu a boca em um esgar de desdém.
— Que fiquem zangados!
— Está bem, mas e amanhã?
— Não haverá amanhã!
— E se houver? Imagine que haja, só para argumentar. Esse aborrecimento pode se transformar em algo mais sério. Afinal de contas, o senhor sabe, os negócios despencaram nos últimos dois meses. A bolsa de valores quebrou três vezes. Os investidores mais sensíveis não acreditam que o mundo esteja chegando ao fim, pensam que outros investidores podem começar a pensar assim, e os mais espertos vendam antes do pânico ter início… embora eles próprios desencadeiem esse início. Então eles compram de volta para vender de novo tão logo o mercado dê sinais de recuperação, reiniciando assim todo o ciclo. E o que acha que está ocorrendo com os negócios? O público também não acredita no senhor, mas a nova mobília também pode esperar alguns meses, por via das dúvidas. O senhor está vendo onde quero chegar. Assim que tudo estiver terminado, os comerciantes vão querer a sua pele. Vão alegar que se qualquer maluco, com o perdão da palavra, pode pôr em risco a economia da nação na hora que quiser, simplesmente fazendo uma previsão extravagante, está na hora de as autoridades tomarem alguma providência a respeito. A coisa vai ficar feia, diretor.
Athor olhou para o repórter com indiferença. Os cinco minutos estavam quase acabando.
— E o que o senhor propõe para remediar a situação?
— Bem… — Theremon sorriu -…o que tenho em mente é o seguinte: a partir de amanhã, serei o seu relações públicas extraoficial. Em outras palavras, farei o que estiver ao meu alcance para aplacar a ira do público, assim como tenho feito o que posso para aliviar a tensão que tomou conta do nosso povo nos últimos tempos. Se for necessário, cuidarei para que apenas o lado ridículo, o lado do humor apareça. Vai ser difícil de agüentar, reconheço, porque terei que fazer com que vocês todos fiquem parecendo um bando de idiotas, mas se eu conseguir que as pessoas riam, pode ser que esqueçam de ficar zangadas. Tudo que peço em troca é o direito de cobrir com exclusividade o que se passar no Observatório esta noite.
Athor não disse nada. Beenay fez que sim com a cabeça e desabafou:
— Professor, é uma proposta justa. Sei que consideramos todas as possibilidades, mas há sempre uma probabilidade de um em um milhão, de um em um bilhão, de que haja um erro em nossa teoria ou em nossos cálculos. E se houver…
Houve um murmúrio entre os funcionários reunidos na sala, e Athor teve a impressão de que concordavam com a opinião de Beenay. Será que todo o departamento se havia voltado contra ele? A expressão de Athor foi a de um homem que está com a boca cheia de uma substância amarga e não consegue se livrar dela.
— Deixá-lo ficar para que amanhã nos exponha ao ridículo? Deve estar pensando que fiquei senil, rapaz.
— Já expliquei ao senhor que minha presença aqui não fará a menor diferença — argumentou Theremon. — Se houver um eclipse, se a Escuridão realmente vier, darei a mão à palmatória e farei o que puder para ajudá-los a superar os momentos de crise que na certa se seguirão. E se nada acontecer, sou a pessoa mais indicada para protegê-los da ira popular…
— Por favor, deixe-o ficar, Dr. Athor — disse uma nova voz.
Athor virou a cabeça, surpreso. Siferra havia entrado sem ser notada.
— Desculpe o atraso. Tivemos um probleminha de última hora no departamento de arqueologia e… — Ela e Theremon trocaram olhares. — Por favor, não se ofenda — disse para Athor. — Sei que ele nos atacou de forma impiedosa. Mesmo assim, pedi-lhe para vir aqui esta noite, para constatar pessoalmente que estávamos com a razão. Ele é… ele é meu convidado, Dr. Athor.
Athor fechou os olhos por um momento. Convidado de Siferra! Era demais. Por que não convidar Folimun, também? E por que não, Mondior?
Mas ele tinha perdido a vontade de discutir. O tempo estava passando, e os outros pareciam não se incomodar com a presença de Theremon. Que importava?
Que importava qualquer coisa, agora?
Athor disse para o repórter, em tom resignado:
— Está bem. Fique, se é isso que quer. Fica entendido, porém, que sua presença não deve prejudicar de nenhuma forma nossas atividades normais. Lembre-se também de que sou o diretor deste Observatório, a despeito de sua opinião a meu respeito, que deixou tão clara em seus artigos, espero total cooperação e respeito…
Siferra aproximou-se de Theremon e disse:
— Na verdade, não esperava que viesse aqui esta noite.
— Por que não? Estava falando sério quando me convidou, não estava?
— É claro que sim. Mas você nos atacou com tanta veemência em seus artigos… de forma tão… cruel…
— “Irresponsável” foi a palavra que você usou — declarou Theremon.
Siferra enrubesceu.
— Irresponsável, também. Não imaginei que tivesse coragem de encarar o Dr. Athor depois das coisas horríveis que andou dizendo a respeito dele.
— Se as sombrias previsões do diretor se cumprirem, vou fazer mais do que encará-lo. vou ajoelhar-me diante dele e pedir perdão com toda a humildade.
— E se as previsões do Dr. Athor não se cumprirem?
— Nesse caso, ele vai precisar de mim — disse Theremon.
— Vocês todos vão. Este é o lugar certo para mim, esta noite.
Siferra olhou surpresa para o jornalista. Ele estava sempre dizendo coisas inesperadas. Ainda não sabia ao certo o que pensar dele. Não simpatizava com Theremon, é claro… e isto bastava. Sua profissão, sua maneira de falar, as roupas espalhafatosas que usava, tudo lhe parecia superficial e vulgar. Para ela, o repórter era um símbolo do mundo rude, grosseiro, árido, ordinário, repelente que havia do lado de fora dos muros da universidade e que sempre detestara.
No entanto, no entanto…
Читать дальше