Havia algumas coisas em Theremon que era forçada a admirar, apesar de tudo. Por exemplo: o jornalista não descansava enquanto não conseguia o que queria. Isso agradava a Siferra. Era sincero a ponto de ser grosseiro, muito diferente dos intelectuais melífluos, hipócritas, sequiosos de poder com os quais estava habituada a conviver no campus. Era inteligente, também, quanto a isso não havia a menor dúvida, embora tivesse aplicado sua inteligência viva, especulativa, a um campo trivial como o jornalismo de escândalo. E respeitava seu vigor físico. Theremon era alto, forte e parecia estar em ótima forma. A arqueóloga jamais apreciara tipos franzinos.
Ela própria sempre praticara exercícios.
Na verdade, tinha que reconhecer (por mais estranho que fosse, por mais que isso a incomodasse) que sentia uma certa atração pelo jornalista. Uma atração de opostos? pensou. Sim, sim, talvez fosse isso. Mas não inteiramente. Por trás das diferenças superficiais, Siferra sabia que ela e Theremon tinham muita coisa em comum, mais do que estava disposta a admitir. Olhou pela janela, nervosa.
— Está ficando escuro. Não me lembro de um dia tão escuro.
— Está com medo? — perguntou Theremon.
— Medo da Escuridão? Oh, não. Mas estou com medo do que pode acontecer. Você devia estar, também.
— O que vai acontecer é que Onos vai nascer e depois os outros sóis, e tudo voltará a ser como antes.
— Você parece muito confiante.
Theremon riu.
— Onos nasceu em todas as manhãs de minha vida. Por que amanhã seria diferente?
Siferra sacudiu a cabeça. A teimosia do repórter estava começando a irritá-la. Era difícil acreditar que há poucos momentos estava dizendo a si própria que o considerava atraente.
— É claro que Onos vai nascer amanhã — disse, em tom glacial. — E seus raios vão iluminar uma cena de devastação que uma pessoa com sua imaginação limitada é evidentemente incapaz de conceber.
— Tudo em chamas, você quer dizer? E as pessoas babando e murmurando palavras sem nexo enquanto as cidades queimam?
— De acordo com os achados arqueológicos…
— Incêndios, sim. Vários holocaustos. Mas apenas em uma região limitada, a milhares de quilômetros daqui e há milhares de anos atrás. — Os olhos de Theremon brilharam com súbita vitalidade. — E onde estão as provas arqueológicas de que tenha havido uma insanidade coletiva? Está extraindo esta conclusão apenas dos incêndios? Como pode estar certa de que não se tratava de fogueiras rituais, acendidas por homens e mulheres em seu juízo perfeito, na esperança de que expulsassem a Escuridão e trouxessem os sóis de volta? Fogueiras que talvez tenham escapado de controle e causado grandes incêndios, sim, mas sem que isso implicasse em nenhuma perturbação mental dos habitantes…
Siferra olhou-o nos olhos.
— Nós temos as provas arqueológicas que você está reclamando. De que os habitantes sofreram algum tipo de perturbação mental, quero dizer.
— Têm?
— Estão nas tabuinhas. Esta manhã, conseguimos traduzir algumas delas, com o auxílio dos Apóstolos do Fogo, e…
Theremon deu uma gargalhada.
— Com o auxílio dos Apóstolos do Fogo! Excelente! Quer dizer que você também se tornou uma deles! É uma pena, Siferra. Uma mulher com um corpo como o seu, e de agora em diante terá que se esconder por baixo daquelas vestes horrorosas…
— Theremon! — exclamou a arqueóloga, furiosa. — Você não leva nada a sério, não é? Está tão convencido de que é o dono da verdade que, ao ser confrontado com alguma coisa que não lhe agrada, arranja jeito de fazer uma piada sem graça! Você é mesmo impossível!
Deu-lhe as costas e foi para o outro lado da sala.
— Siferra… Siferra, espere…
Ela o ignorou. Estava tremendo de raiva. Agora compreendia que fora um erro convidar alguém como Theremon para estar com eles na noite do eclipse. Na verdade, fora um erro ter qualquer coisa a ver com o repórter.
A culpa era de Beenay, pensou. Era tudo culpa de Beenay. Afinal, tinha sido Beenay que a apresentara a Theremon, no Clube Universitário, alguns meses antes. Aparentemente, o astrônomo e o jornalista se conheciam há muito tempo, e Theremon consultava Beenay a respeito de questões científicas que se tornavam notícia.
O que estava nas manchetes dos jornais na ocasião era a previsão de Mondior 71 de que o mundo acabaria no dia 19 de Theptar, dali a aproximadamente um ano. É claro que ninguém na universidade sentia a menor simpatia por Mondior e seus Apóstolos, mas tinha sido mais ou menos na mesma ocasião que Beenay observara irregularidades na órbita de Kalgash e Siferra encontrara, na colina de Thombo, indícios de incêndios que ocorriam a intervalos de dois mil anos. As duas descobertas, infelizmente, apoiavam as alegações dos Apóstolos.
Theremon parecia conhecer de perto o trabalho de Siferra em Beklimot. Quando o jornalista entrou no Clube Universitário (Siferra e Beenay já estavam lá, por mera casualidade), Beenay teve apenas que dizer:
— Theremon, esta é minha amiga, a Dra. Siferra, do departamento de arqueologia.
E Theremon respondeu em seguida:
— Sim. A pilha de cidades incendiadas naquela colina.
Siferra sorriu friamente.
— O senhor ouviu falar?
— Fui eu que contei — Beenay apressou-se a explicar. — Sei que prometi não comentar com ele, mas depois que você revelou tudo a Athor, Sheerin e os outros, achei que não havia mal em contar a Theremon, contanto que ele se comprometesse a guardar segredo. Eu confio neste homem, Siferra. Tenho certeza de que…
— Tudo bem, Beenay — disse Siferra, esforçando-se para não demonstrar o aborrecimento que sentia. — Você realmente não devia ter dito nada. Mas eu perdôo você.
— Não se preocupe — disse Theremon. — Beenay fez-me jurar solenemente que não publicarei uma única palavra respeito. Mas é fascinante! Fascinante! Quantos anos tem cidade mais antiga? Cinquenta mil anos?
— Não mais que quinze mil — corrigiu Siferra. — O que, mesmo assim, é muito, considerando que Beklimot… já ouviu falar de Beklimot, não é? Pois é. Beklimot tem apenas dois mil e poucos anos de idade, e era considerada até agora a cidade mais antiga do planeta. O senhor não está pretendendo escrever uma reportagem a respeito das minhas descobertas, está?
— Na verdade, não estava. Como disse, dei minha palavra a Beenay. Além disso, a questão me parecia um pouco remota para os leitores da Crônica. Agora, porém, acho que talvez valha a pena aprofundar o assunto. Gostaria de me encontrar de novo com a senhora para discutir os detalhes de sua descoberta.
— Isso não será possível — declarou Siferra.
— O quê? Encontrar-se comigo ou discutir os detalhes de sua descoberta?
A observação fez a arqueóloga encarar toda a conversa por um novo prisma. Percebeu, surpresa e levemente irritada, que o repórter se sentia atraído por ela como mulher. E se deu conta de que, nos últimos minutos, Theremon devia estar imaginando se havia alguma coisa entre ela e Beenay, já que estavam juntos quando ele entrara no clube. Devia ter chegado à conclusão de que eram apenas amigos e aproveitara a primeira oportunidade para demonstrar seu interesse.
Ora, o problema era dele, pensou Siferra. Respondeu, em tom deliberadamente neutro:
— Ainda não publiquei minha descoberta em nenhuma revista científica. Até que o faça, não seria ético permitir que ela seja divulgada pela imprensa.
— Compreendo perfeitamente. E se eu prometer que a reportagem só será publicada quando a senhora autorizar? Concordaria em me revelar mais detalhes sobre o que descobriu?
— Bem.
Olhou para Beenay. Não estava acostumada a acreditar em promessas de repórteres.
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