Folimun não concordara com a proposta. Não estava interessado em transcrições, pois não haveria como comprovar sua autenticidade. Quanto a fornecer à arqueóloga os textos que estavam em poder dos Apóstolos, isto estava fora de questão. Esses textos eram sagrados, explicou, e só podiam ser manuseados por Apóstolos. Se entregasse a ele as tabuinhas, poderia mandar fazer uma tradução, mas nenhum estranho teria acesso aos textos que estavam em poder dos Apóstolos.
— Senti-me realmente tentada a juntar-me aos Apóstolos — disse Siferra — apenas para poder pôr as mãos naqueles textos.
— Você? Entrar para os Apóstolos do Fogo?
— Apenas para ter acesso aos textos. Mas não tive coragem. Recusei a proposta de Folimun. E Mudrin teve que traduzir os textos sem a ajuda dos Apóstolos. Constatou que as tabuinhas de fato falavam de algum castigo terrível que os deuses haviam imposto à humanidade, mas as traduções eram incompletas, claudicantes, insatisfatórias.
Agora parecia que, afinal, os Apóstolos haviam ficado com as tabuinhas. Isso era difícil de aceitar. No caos que os aguardava, estariam exibindo as tabuinhas, as suas tabuinhas, como mais uma prova de sua sabedoria e santidade.
— Sinto muito por suas tabuinhas terem desaparecido, Siferra — disse Beenay -, mas ainda não há provas de que tenham sido os Apóstolos. Talvez elas
tornem a aparecer.
— Não acho provável — disse Siferra, com um sorriso triste, voltando-se para olhar para o céu que escurecia.
O melhor que podia fazer para consolar-se era adotar a postura de Athor: o mundo estava para acabar, de modo que nada mais tinha importância. Tal atitude, porém, não estava de acordo com sua personalidade. Para ela, era importante pensar no dia de amanhã. Pensar em sobrevivência, em reconstrução, em ir à luta. Não estava certo cair em depressão, como acontecera com Athor, aceitar o fim da humanidade, dar de ombros e abandonar toda a esperança.
Uma voz de tenor interrompeu seus pensamentos.
— Olá, pessoal! Olá, olá, olá!
— Sheerin! — exclamou Beenay. — Que está fazendo aqui?
As bochechas gorduchas do recém-chegado se expandiram em um largo sorriso.
— Por que essa atmosfera de cemitério? Ninguém está perdendo a coragem, espero.
Athor olhou para ele, aborrecido, e disse:
— É mesmo, o que está fazendo aqui, Sheerin? Pensei que fosse ficar no Abrigo.
Sheerin riu e deixou cair o corpo atarracado em uma cadeira.
— Abrigo uma ova! Aquele lugar estava me matando de tédio. Prefiro ficar aqui, onde as coisas estão esquentando. Ou acha que também não tenho minha cota de curiosidade? Já estive no Túnel do Mistério. Posso sobreviver a outra dose de Escuridão. E quero ver essas Estrelas de que os Apóstolos tanto falam. — Esfregou as mãos e acrescentou, em tom mais sério: — Lá fora o frio está de rachar. Parece que o vento vai transformar o nariz da gente em picolé. A essa distância, o calor de Dovim não serve para nada, nesta noite.
O idoso diretor rangeu os dentes, exasperado.
— Por que sai do seu caminho para fazer coisas insanas, Sheerin? O que é que você pode fazer de útil aqui?
— Que é que eu posso fazer de útil aqui? — Sheerin abriu os braços, em cômica resignação. — Um psicólogo não serve para nada lá no Abrigo. Não no momento. Não posso fazer nada por eles. Estão todos calmos e seguros, debaixo da terra, a salvo de tudo.
— E se uma multidão invadir o local durante a Escuridão?
Sheerin riu.
— Duvido que alguém que não saiba onde é a entrada do Abrigo consiga encontrá-la à luz do dia, quanto mais no escuro. Mas se isso acontecer, vão precisar de homens de ação para defendê-los. Eu? Sou muito gordo para isso. Por isso, prefiro ficar aqui.
Siferra se sentiu melhor ao ouvir as palavras de Sheerin. Ela também decidira passar a noite da Escuridão no Observatório, e não no Abrigo. Talvez fosse uma pretensão idiota, um excesso de autoconfiança, mas estava certa de que conseguiria sobreviver ao eclipse (e mesmo à chegada das Estrelas, se aquela parte do mito fosse verdadeira), sem perder a razão. Por isso, estava disposta a não deixar passar a experiência.
Agora parecia que Sheerin, que não era nenhum modelo de coragem, tivera a mesma ideia. O que queria dizer que havia chegado à conclusão de que o impacto da Escuridão não seria tão violento assim, apesar das previsões pessimistas que vinha fazendo há meses. Siferra tinha ouvido falar do Túnel do Mistério e seus efeitos sobre as pessoas, incluindo o próprio Sheerin. Mesmo assim, ali estava ele. Devia achar que, no final, as pessoas se revelariam mais resistentes do que julgara a princípio.
Ou talvez sua presença ali fosse simplesmente um ato de desespero. Talvez preferisse perder a razão naquela mesma noite, pensou Siferra, do que conservar a lucidez e ter que enfrentar os problemas terríveis, talvez insolúveis, que aguardavam a humanidade depois do cataclismo.
Não. Não. Estava se entregando mais uma vez ao pessimismo. Procurou pensar em outra coisa.
— Sheerin ! — Era Theremon, atravessando a sala para cumprimentar o psicólogo. — Lembra-se de mim? Theremon?
— Claro que me lembro, Theremon — disse Sheerin, estendendo a mão. — Puxa, rapaz, você tem sido duro conosco nos últimos tempos! Mas o que passou, passou, não é mesmo?
Theremon apertou a mão de Sheerin .
— Que Abrigo é esse onde você devia estar? Ouvi vocês falarem a respeito dele, mas não tenho a menor ideia do que se trata.
— Bem — disse Sheerin -, conseguimos convencer umas poucas pessoas da validade de nossas previsões de… hum… de uma catástrofe, se quisermos ser sensacionalistas e essas pessoas concordaram em tomar medidas preventivas. Entre essas pessoas estão familiares dos funcionários do Observatório, alguns professores da Universidade de Saro e uns poucos de fora. Minha companheira Liliath 221 está lá neste exato momento, e eu também deveria estar, se não fosse minha curiosidade infernal. No total, devem ser mais de trezentos.
— Entendo. Eles estão escondidos em um lugar onde a Escuridão e… hum… as Estrelas não podem alcançá-los. Vão ficar lá enquanto o resto do mundo enlouquece.
— Exatamente. Os Apóstolos também dispõem de algum tipo de esconderijo, você sabe. Não sabemos quantas pessoas estão lá. Apenas umas poucas, se tivermos sorte, mas é mais provável que sejam milhares, esperando para sair e tomar conta do mundo depois da Escuridão.
— Quer dizer que o grupo da universidade representa uma tentativa de resistir à conquista do mundo pelos Apóstolos?
Sheerin assentiu.
— Se conseguirem. Não será fácil, com quase toda a humanidade insana, com as grandes cidades em chamas, com um grupo de Apóstolos disposto a impor sua vontade ao que restar da civilização… não, o ambiente não será favorável à sobrevivência. Mas eles dispõem de comida, água, abrigo e armas…
— E não é só isso — interveio Athor. — Eles também estão com todos os nossos registros, exceto os que vamos colher no dia de hoje. Esses registros serão muito importantes para o próximo ciclo. Na verdade, só a eles importam. O resto pode se danar.
Theremon deu um longo assovio.
— Vocês estão certos, mesmo, de que tudo que previram vai realmente acontecer!
— Que outra atitude poderíamos tomar? — disse Siferra, em tom agressivo. — Quando nos convencemos de que o desastre era inevitável…
— É claro — concordou o jornalista. — Vocês tinham que se preparar. Porque estavam de posse da Verdade. Assim como os Apóstolos do Fogo estão de posse da Verdade. Gostaria de ter metade da convicção de vocês. Esta noite pertence aos donos da verdade.
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