Siferra olhou para ele, furiosa.
— Gostaria de ver você lá fora esta noite, vagando pelas ruas em chamas! Mas não… não, você estará em segurança aqui dentro! É mais do que merece!
— Calma — disse Sheerin, puxando Theremon pelo braço. — Não diga mais nada, amigo. Vamos conversar em outro lugar.
— Boa ideia — concordou Theremon.
Entretanto, não fez nenhuma menção de deixar a sala. Alguns funcionários haviam começado uma partida de xadrez estocástico, e Theremon os observou por alguns momentos, obviamente sem compreender muita coisa do jogo, enquanto os movimentos eram feitos rapidamente e em silêncio. Parecia admirado com a capacidade dos jogadores de se concentrarem no jogo, em um momento em que o fim do mundo, de acordo com eles próprios, estava para ocorrer dali a algumas horas.
— Vamos — insistiu Sheerin.
— Está bem. Está bem.
Ele e Sheerin saíram para o corredor, seguidos, um instante depois, por Beenay.
Que homem irritante, pensou Siferra.
Olhou para o disco vermelho de Dovim. O céu teria ficado mais escuro nos últimos minutos? Não, não, disse para si própria, isso era impossível. Dovim ainda estava lá. Era apenas sua imaginação. O céu parecia estranho, agora que Dovim estava sozinho. Nunca havia visto uma cor do céu como aquela, de um vermelho escuro, quase roxo. Mas o pequeno sol era suficiente para iluminar a superfície do planeta.
Lembrou-se das tabuinhas perdidas. Era melhor pensar em outra coisa.
Os jogadores de xadrez é que estavam certos. Resolveu sentar-se e relaxar. Se conseguisse.
Sheerin se encaminhou para a sala ao lado. Ali havia várias poltronas macias, grossas cortinas vermelhas nas janelas e um tapete castanho no chão. com a estranha luz avermelhada de Dovim entrando pela janela, era como se houvesse sangue coagulado em toda parte.
Ele ficara surpreso ao encontrar Theremon no Observatório, depois das coisas horríveis que escrevera, depois de tudo que havia feito para sabotar as tentativas de Athor de preparar a nação para a catástrofe. Nas últimas semanas, o diretor ficava quase histérico toda vez que o nome de Theremon era mencionado; mesmo assim, permitira que o repórter ficasse ali durante o eclipse.
Aquilo era estranho e um pouco preocupante. Podia significar que a personalidade do velho astrônomo estava começando a se desintegrar diante do desastre iminente. Na verdade, Sheerin também estava surpreso por ele próprio estar no Observatório. Tinha sido uma decisão de última hora, um impulso irresistível do tipo que raras vezes experimentara em sua vida. Liliath tinha ficado muito preocupada.
Ele também. Não se esquecera das aflições que sofrera no Túnel do Mistério. Mesmo assim, chegara à conclusão de que tinha que estar ali, da mesma forma como se sentira obrigado a entrar no Túnel do Mistério. Para os outros, podia não ser mais do que um professor inconsequente e obeso; considerava-se, porém, um cientista. Durante toda a vida profissional, dedicara-se ao estudo da Escuridão. Como, então, poderia encarar a si próprio no futuro, sabendo que durante o episódio mais importante de Escuridão em mais de dois mil anos decidira permanecer na segurança de um abrigo subterrâneo?
Não, tinha que estar ali. Testemunhando o eclipse. Vendo a Escuridão se apossar do mundo. Quando entraram no quarto, Theremon observou, com franqueza inesperada:
— Estou começando a pensar se o meu ceticismo tinha razão de ser, Sheerin.
— E com razão.
— É o que estou dizendo. Quando olho para Dovim e vejo aquela estranha luz vermelha tomando conta de tudo… Sabe de uma coisa? Daria dez créditos por uma dose decente de luz branca. Um Tano Especial. A propósito, gostaria de ver Tano e Sitha no céu, também. Onos seria ainda melhor.
— Onos vai aparecer amanhã de manhã — observou Beenay, que havia acabado de entrar.
— Sim, mas nós ainda estaremos aqui? — perguntou Sheerin. E sorriu no mesmo instante, para amenizar suas palavras. Disse para Beenay: — Nosso amigo jornalista está precisando de um drinque.
— Athor nos proibiu de beber esta noite. Ele quer todo mundo sóbrio.
— Então vamos ter que nos contentar com água? — disse Sheerin.
— Bem…
— Ora, vamos, Beenay. Athor não vai entrar aqui.
— Acho que não.
Dirigindo-se pé ante pé para a janela mais próxima, Beenay agachou-se e pegou em um armário debaixo da janela uma garrafa com um líquido vermelho que borbulhou sugestivamente quando ele sacudiu a garrafa.
— Eu desconfiava que Athor não sabia a respeito desta garrafa — observou, enquanto trotava de volta para a mesa.
— Pronto! Só temos um copo, de modo que, como convidado, pode ficar com ele, Theremon. Sheerin e eu podemos beber da garrafa. — Começou a encher o pequeno copo com todo o cuidado.
Theremon comentou, rindo:
— Quando nos conhecemos, você detestava bebidas alcoólicas, Beenay.
— Isso faz muito tempo. Agora é diferente. Estou aprendendo, Theremon. Um bom drinque pode ser o melhor calmante em momentos como este.
— Tem toda razão — concordou Theremon. Bebeu um gole. Era vinho tinto, forte e pesado, provavelmente um vinho barato produzido em uma das províncias do sul. O tipo de bebida que um neófito como Beenay compraria, por falta total de conhecimento do assunto. Entretanto, era melhor do que nada.
Beenay se serviu e passou a garrafa para Sheerin. O psicólogo tomou um longo gole. Depois, estalou os lábios e disse para Beenay:
— Athor parece estranho esta noite, mesmo levando em conta as circunstâncias. Que foi que houve?
— Deve estar preocupado com Faro e Yimot.
— Quem?
— Dois alunos de pós-graduação. Eles deviam ter chegado há muito tempo. Athor precisa de toda a ajuda disponível, já que a maior parte dos funcionários foi para o Abrigo.
— Você não acha que os dois desertaram, acha? — perguntou Theremon.
— Quem? Faro e Yimot? Claro que não. Eles dariam tudo para estar aqui esta noite, fazendo medidas, quando o eclipse começar. Entretanto, pode ser que tenham ficado presos em algum engarrafamento na cidade de Saro. — Deu de ombros. — Acho que vão aparecer, mais cedo ou mais tarde. Mas se não chegarem logo, os outros funcionários vão ficar sobrecarregados. Talvez seja isso o que está preocupando Athor.
— Não sei, não — disse Sheerin. — É claro que deve estar pensando nos dois, mas há algo mais. Ele parece tão velho, de repente. Cansado. Derrotado. Da última vez que o vi, estava cheio de entusiasmo, falando na reconstrução da sociedade depois do eclipse… era o Athor de verdade, o homem de ferro. Agora, tudo que vejo é um velho triste, esperando pateticamente o fim que se aproxima. O fato de nem mesmo haver tentado expulsar Theremon…
— Ele tentou — corrigiu o repórter. — Foi Beenay que o convenceu a me deixar ficar. Beenay e Siferra.
— Pois é o que estou dizendo. Beenay, você já viu alguém fazer Athor mudar de ideia?… Quer passar o vinho?
— Pode ser minha culpa — disse Theremon. — Por Ter atacado seus planos de construir abrigos em todo o país. Se ele acredita mesmo que em poucas horas nosso planeta será tomado pela Escuridão e quase todos vão ficar loucos…
— É exatamente o que ele pensa — assegurou Beenay.
— Como todos nós, aliás.
— Nesse caso, o fato de o governo não levar a sério as advertências de Athor pode representar para ele uma trágica derrota. E eu me considero o maior responsável. Se as coisas se passarem como vocês previram, jamais me perdoarei.
— Não se superestime, Theremon — disse Sheerin. Mesmo que tivesse escrito cinco artigos por dia defendendo a posição de Athor, o governo não teria feito coisa alguma para ajudá-lo. Afinal, por que levariam a sério um repórter sensacionalista como você?
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