— Foi exatamente o que fiz — declarou Athor, olhando para o relógio. — Que é que o seu mestre deseja de mim agora? Cumpri minha parte no trato.
Folimun esboçou um sorriso, mas não disse nada. Houve um murmúrio geral de inquietação.
— Pedi a ele alguns dados astronômicos, sim — disse Athor, olhando em torno. — Dados que apenas os Apóstolos possuíam. E recebi esses dados. Sou grato a ele por isto. Em troca, concordei em tornar pública minha confirmação matemática da profecia dos Apóstolos de que a Escuridão desceria sobre Kalgash no dia 19 de Theptar.
— Não havia necessidade de confirmação — declarou Folimun, com orgulho. — As provas estão todas no Livro das Revelações.
— Apenas para os que acreditam cegamente no livro protestou Athor. — Não distorça minhas palavras. Eu me propus a fornecer provas científicas para os dogmas de vocês e cumpri minha promessa!
Os olhos do Apóstolo se estreitaram, zangados.
— Cumpriu, sim, mas da forma errada. A sua suposta explicação apoia os nossos dogmas, mas ao mesmo tempo os torna desnecessários. Você transformou a Escuridão e as Estrelas em fenômenos naturais, despojou-os de todo o significado místico. Isto é uma blasfêmia!
— Se é, a culpa não é minha. Os fatos existem. Como posso deixar de divulgá-los?
— Os seus “fatos” são uma fraude e uma ilusão.
— Como é que você sabe?
A resposta traduzia a certeza de uma fé absoluta.
— Eu sei!
O diretor ficou ainda mais vermelho. Beenay fez menção de se aproximar, mas Athor deteve-o com um gesto.
— E o que é que Mondior 71 quer que a gente faça? Ele ainda pensa, suponho, que ao tentar avisar ao mundo para que tome medidas contra a loucura que se aproxima, estamos interferindo de alguma forma em sua tentativa de assumir o poder depois do eclipse. Pois para seu governo, muito poucas pessoas nos levaram a sério! Espero que isto o faça feliz!
— A tentativa em si já causou mal suficiente. E o que estão tentando fazer aqui esta noite tornará as coisas ainda piores!
— Como sabe o que estamos tentando fazer aqui esta noite? — perguntou Athor.
Suavemente, Folimun disse:
— Sabemos que ainda não desistiu de influenciar a população. Como não conseguiu fazê-lo antes da Escuridão e do Fogo, pretende sair daqui, depois que tudo acabar, munido de fotografias da transição da luz do dia para a Escuridão. Você pretende oferecer aos sobreviventes uma explicação racional do que aconteceu e guardar em lugar seguro as supostas provas de suas teorias, de modo que no final do próximo Ano de Divindade seus sucessores no Observatório convençam a humanidade de que é possível resistir à Escuridão.
— Alguém deu com a língua nos dentes — sussurrou Beenay.
— Tudo isso, é claro, interfere com os nossos propósitos. Mondior 71 é um profeta apontado pelos deuses, o homem destinado a guiar a humanidade durante os tempos difíceis que nos aguardam.
— Vá logo ao que interessa — disse Athor, secamente. Folimun fez que sim com a cabeça.
— A questão é simplesmente a seguinte: a tentativa mal intencionada e sacrílega de conseguir informações através de instrumentos diabólicos deve ser evitada a qualquer custo. Lamento não ter tido a oportunidade de destruir seus aparelhos infernais com minhas próprias mãos.
— Era isso que você pretendia? Não teria adiantado muita coisa. Todos os nossos dados, exceto os que pretendemos colher nos próximos minutos, já estão guardados em lugar seguro.
— Precisa destruí-los.
— O quê?
— Apague todos os dados. Destrua todos os instrumentos. Em troca, prometo proteger todos vocês do caos que certamente tomará conta do país quando a Escuridão chegar.
Alguns começaram a rir.
— Ele é louco — disse uma voz. — Completamente louco.
— Está enganado — protestou Folimun. — Devotado, sim. Dedicado a uma causa que está além de sua compreensão, sim. Mas não sou maluco. Aquele homem ali — apontou para Theremon — é testemunha disso. E olhem que se trata de alguém conhecido pelo seu ceticismo. Mas coloco minha causa acima de tudo. Esta noite é crucial para a história do mundo. Quando o dia nascer, a Divindade deve triunfar. O que lhes trago é um ultimato. Desistam da tentativa sacrílega de encontrar explicações racionais para a chegada da Escuridão e aceitem Sua Serenidade Mondior 71 como o representante legítimo da vontade dos deuses. Quando a luz voltar, trabalhem para divulgar sua mensagem e não voltem a falar em eclipses, órbitas e outras tolices.
— E se nos recusarmos? — disse Athor, que parecia estar achando graça na pretensão de Folimun.
— Nesse caso — disse o Apóstolo, friamente -, um grupo de homens de bem, liderados pelos Apóstolos do Fogo, subirá esta colina e destruirá o Observatório e tudo que contém.
— Agora chega! — exclamou Athor. — Chamem a Segurança. Quero ver este homem fora aqui!
— Vocês têm exatamente uma hora — disse Folimun, imperturbável. — Quando esse prazo expirar, o Exército Sagrado atacará.
— Ele está blefando — disse Sheerin. Athor repetiu, como se não tivesse ouvido:
— Segurança! Quero este homem fora daqui!
— Bolas, Athor, que é que há com você? — exclamou Sheerin. — Se deixar que ele vá, estará criando mais problemas para nós. Não compreende que esses Apóstolos vivem do caos? Folimun é um mestre na arte de arranjar confusão!
— Que é que você sugere?
— Vamos mantê-lo prisioneiro — disse Sheerin. — Por que não o trancamos em um armário até a Escuridão passar? Para ele, é a pior coisa que podemos fazer. Se estiver trancado, não verá a Escuridão nem as Estrelas. Não é preciso conhecer muito da doutrina dos Apóstolos para saber que, para eles, deixar de ver as Estrelas quando elas aparecem significará a perda da alma imortal. Mande prendê-lo, Athor. Não só é mais seguro para nós, mas também é o que ele merece.
— E depois — protestou Folimun -, quando todos ficarem loucos, não vai haver ninguém para me libertar! Esta é uma sentença de morte. Sei tão bem quanto você o que significa a chegada das Estrelas. Na verdade, sei melhor do que você. Todos vão enlouquecer, nem se lembrarão de que eu existo. Querem que eu morra sufocado ou de inanição? É bem o que se poderia esperar de um grupo de… de cientistas. — Ele fez a palavra soar obscena. — Mas não vai dar certo. Tomei a precaução de instruir meus seguidores para atacarem o Observatório daqui a uma hora, a menos que eu volte e cancele minha ordem. Assim, não terão nada a ganhar me mantendo prisioneiro. Estarão apenas decretando a destruição do Observatório. Daqui a uma hora, meus companheiros me libertarão e assistiremos juntos à chegada das Estrelas. — Uma veia pulsou na têmpora de Folimun. — Amanhã, quando vocês todos estiverem reduzidos a pobres dementes, condenados pelos seus pecados, começaremos a construção de um novo mundo.
Sheerin olhou inquisitivo para Athor. O diretor, porém, também parecia em dúvida. Beenay, ao lado de Theremon, murmurou:
— Que é que você acha? Ele está blefando?
O jornalista não respondeu. Estava lívido.
— Vejam!
O dedo que ele apontou para o céu estava trêmulo, e sua voz soou seca e esganiçada.
Houve uma exclamação em uníssono quando todos acompanharam o dedo com os olhos e, por um momento, prenderam a respiração.
Estava faltando um pedaço de Dovim!
A mancha escura tinha talvez a largura de uma unha, mas para os observadores assustados era como um buraco imenso.
Em Theremon, a visão daquele pequeno arco de escuridão teve um efeito devastador. O repórter fechou os olhos, levou a mão à cabeça e deu as costas para a janela.
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