Sheerin olhou pela janela. Theremon, ao lado dele, olhou também. Lá embaixo, na base da colina, os campos cultivados davam lugar às casas brancas dos subúrbios.
A metrópole, mais além, era uma mancha no horizonte, quase invisível à luz mortiça de Dovim. Uma luz lúgubre de pesadelo banhava a paisagem. Sheerin repetiu, sem se virar:
— Sim, eles vão levar algum tempo. O jeito é manter as portas trancadas, continuar trabalhando e rezar para que a totalidade chegue primeiro. Quando as Estrelas aparecerem, duvido que até mesmo os Apóstolos consigam manter a multidão sob controle.
Dovim estava reduzido à metade; a linha divisória introduzia uma ligeira concavidade na parte ainda visível do sol vermelho. Era como se uma gigantesca pálpebra estivesse se fechando inexoravelmente sobre a luz de um mundo.
Theremon ficou olhando, fascinado. Os ruídos na sala em que se encontrava desapareceram, e ele podia sentir apenas o silêncio pesado dos campos lá fora. Os próprios insetos pareciam mudos de medo. E tudo estava ficando mais escuro. Aquela estranha luminosidade avermelhada tomava conta de tudo.
— Não fique olhando muito tempo — Sheerin murmurou em seu ouvido.
— Para o sol?
— Para a cidade. Para o céu. Não estou preocupado com os seus olhos. Estou preocupado com a sua mente, Theremon.
— Minha mente está bem.
— Quero que continue assim. Como se sente?
— Bem… — Theremon semicerrou os olhos. Estava com a garganta um pouco seca. Enfiou o dedo no espaço entre a garganta e o colarinho. O colarinho parecia mais justo do que o normal. Como se uma mão estivesse apertando sua garganta. Virou a cabeça para um lado e para o outro, mas não sentiu nenhum alívio. — Estou com um pouco de dificuldade para respirar.
— Dificuldade para respirar é um dos primeiros sintomas de um ataque de claustrofobia — disse Sheerin . — Quando sentir um aperto no peito, é melhor afastar-se da janela.
— Quero ver o que está acontecendo.
— Está bem, está bem, faça como quiser.
Theremon abriu bem os olhos e respirou fundo duas ou três vezes.
— Você acha que eu não vou agüentar, não é?
— Eu não acho mais nada, Theremon — disse Sheerin, com ar cansado. — As coisas estão mudando de momento para momento, não é mesmo? Ei, aí vem Beenay.
O astrônomo se colocara entre os dois e a luz. Sheerin olhou para ele, ansioso.
— Olá, Beenay.
— Incomodam-se se eu me juntar a vocês? — perguntou. — Acabei de ajustar os aparelhos e não tenho nada para fazer até a totalidade. — Fez uma pausa e olhou para o Apóstolo, que tinha tirado do bolso um livro pequeno, encadernado, e não parara de ler desde então.
— Vocês não iam trancá-lo em um armário?
— Mudamos de ideia — disse Theremon. — Sabe onde está Siferra, Beenay? Eu a vi há pouco, mas ela não parece estar aqui agora.
— Lá em cima, na cúpula. Queria dar uma olhada no telescópio maior. Não que haja alguma coisa que não possa ser vista a olho nu.
— E Kalgash Dois? — perguntou Theremon.
— Que há para ver? Escuridão é Escuridão. Podemos ver os efeitos de sua passagem diante de Dovim. Kalgash Dois em si, porém, é apenas um pedaço de noite no céu noturno.
— Noite… — cismou Sheerin. — Que palavra estranha!
— Já deixou de ser estranha — disse Theremon. — Quer dizer que não é possível ver o tal satélite, mesmo com o auxílio do grande telescópio?
Beenay pareceu envergonhado.
— Nossos telescópios não são na verdade muito sensíveis, você sabe. Servem para observar os sóis, mas quando a luz é escassa… — Sacudiu a cabeça. Endireitou o corpo, e seu rosto se contraiu com o esforço para respirar normalmente.
— Mas Kalgash Dois existe. A estranha zona de Escuridão que está passando entre nós e Dovim… isso é Kalgash Dois.
— Está sentindo dificuldade para respirar, Beenay? perguntou Sheerin.
Beenay aspirou o ar.
— Um pouco. Acho que vou ficar resfriado.
— É mais provável que sejam os primeiros sintomas de claustrofobia.
— Você acha?
— Acho. Alguém mais está se sentindo estranho?
— Tenho a impressão de que meus olhos estão falhando — disse Beenay. — As coisas ficaram fora de foco. Estou com frio, também.
— Oh, está frio, não há dúvida. Isso não é nenhuma ilusão. — Theremon fez uma careta. — É como se meus pés estivessem numa geladeira.
— O que precisamos — observou Sheerin — é distrair a cabeça com outros assuntos. Há pouco eu estava explicando-lhe, Theremon, por que a experiência de Faro com os furos no teto fracassou.
— Estava começando a explicar — disse o repórter. Ele abraçou as pernas dobradas e apoiou o queixo nos joelhos.
O que eu devia fazer, pensou, era ir lá em cima procurar Siferra, porque falta muito pouco para a totalidade. Entretanto, estava se sentindo estranhamente apático. Ou seria simplesmente o medo de encará-la?
— Como eu comecei a dizer, o erro que cometeram foi tomar ao pé da letra o que está escrito no Livro das Revelações. Ao que tudo indica, as Estrelas não têm existência real. Pode ser, você sabe, que na presença da Escuridão total, a mente sinta uma necessidade vital de criar algum tipo de luz As Estrelas podem ser simplesmente essa ilusão de luz.
— Você está querendo dizer que as Estrelas são consequência da loucura, e não uma de suas causas – interrompeu Theremon. — Nesse caso, de que servirão as fotografias que os astrônomos estão tirando esta noite?
— Servirão para provar que as Estrelas não passam de uma ilusão. Mas pode ser que eu esteja errado. Pode ser…
Beenay arrastara sua cadeira para mais perto, e havia uma expressão súbita de entusiasmo em seu rosto.
— Que bom que vocês dois puxaram o assunto. — Seus olhos se estreitaram, e ele começou: — Estive pensando nessas Estrelas e tive uma ideia que me pareceu muito interessante. Naturalmente, não disponho de provas concretas, de modo que tudo não passa de mera especulação. Querem ouvir assim mesmo?
-Por que não? — disse Sheerin, recostando-se na cadeira.
Beenay parecia meio relutante. Mas Sheerin sorriu e com timidez prosseguiu:
— Suponhamos que existam outros sóis no universo.
Theremon começou a rir.
— Você disse que era uma especulação, mas mesmo assim…
— Não, não é tão fantástico como parece. Não me refiro a sóis tão próximos quanto os que já conhecemos, que por alguma razão misteriosa não conseguimos ver. Estou falando de sóis tão distantes que não possam ser vistos em condições normais. Se estivessem próximos, seriam tão brilhantes quanto Onos, talvez, ou Tano e Sitha. Mas como estão muito mais afastados, sua luz é para nós como pequenos pontos luminosos, que o brilho constante dos nossos seis sóis se encarrega de ocultar.
— Não está se esquecendo da Lei da Gravitação Universal? — objetou Sheerin. — Se esses sóis existissem, sua presença não se manifestaria através de forças atrativas, como ocorre com Kalgash Dois?
— Não, se eles estivessem suficientemente distantes explicou Beenay. — Realmente distantes… quatro anos-luz, ou mais. Nesse caso, as perturbações seriam pequenas demais para serem detectadas.
— Quantos anos tem um ano-luz? — perguntou Theremon.
— Sua pergunta não faz sentido. O ano-luz é uma unidade de comprimento. Corresponde à distância que a luz percorre em um ano. O que, em quilômetros, é um número imenso, já que a luz viaja muito depressa. De acordo com nossas estimativas mais recentes, a velocidade da luz é da ordem de 25O mil quilômetros por segundo, mas os dados não são muito precisos. Acho que se tivéssemos instrumentos melhores, descobriríamos que a velocidade da luz é ainda um pouco maior que este valor. Entretanto, mesmo tomando a velocidade da luz como sendo de 25O mil quilômetros por segundo, podemos calcular que Onos está a cerca de dez minutos-luz daqui, Tano e Sitha estão a uma distância onze vezes maior, e assim por diante. Nesse caso, um sol situado a alguns anos-luz de distância estaria muito, muito longe de Kalgash. Tão longe que jamais poderíamos detectar as perturbações causadas na órbita do nosso planeta, porque elas seriam insignificantes. Muito bem: vamos supor que existam muitos sóis no universo, a uma distância de quatro a oito anos-luz de Kalgash. Uma ou duas dúzias desses sóis, talvez.
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