Assim, quando Mondior vociferou que a vingança dos deuses estava a caminho, Theremon 762 replicou com imagens bem-humoradas de como seria o mundo se os Apóstolos conseguissem “reformar” a sociedade de acordo com sua doutrina: as pessoas indo à praia com trajes de banho até os tornozelos, longas sessões de oração antes dos eventos esportivos, todos os grandes livros e peças clássicas submetidos ao crivo impiedoso da censura para eliminar as passagens consideradas profanas.
E quando Athor e seu grupo divulgaram diagramas mostrando a órbita do invisível Kalgash Dois a caminho do seu encontro fatídico com a luz vermelha de Dovim, Theremon falou de dragões, gigantes invisíveis e outros monstros mitológicos cabriolando pelo céu.
Quando Mondior mencionou a autoridade científica de Athor 77 como argumento em apoio aos ensinamentos dos Apóstolos, Theremon respondeu perguntando como alguém poderia levar a sério as teorias de Athor 77, agora que o velho astrônomo havia perdido totalmente o juízo.
Quando Athor propôs um programa de emergência para armazenar alimentos, informações técnicas e científicas e tudo mais que pudesse ser necessário depois que a insanidade se disseminasse, Theremon observou que, em alguns lugares, a insanidade já se havia disseminado, e publicou uma lista de artigos essenciais a serem guardados no porão de todas as residências (“abridores de latas, percevejos, cópias da tabuada de multiplicar, dois baralhos… Escreva o seu nome em uma etiqueta e amarre-o no pulso direito, porque depois da Escuridão pode ser que você não se lembre mais dele… Amarre no pulso esquerdo uma etiqueta com os dizeres: Para saber qual é o seu nome, consulte a etiqueta que está no outro pulso… “)
Depois que Theremon escreveu vários artigos na mesma linha, ficou difícil para os leitores decidir que grupo era mais absurdo: os fanáticos profetas do desastre dos Apóstolos do Fogo ou os crédulos cientistas da Universidade de Saro. Uma coisa, porém, era certa: graças a Theremon, ninguém acreditava que algo fora do comum fosse ocorrer na noite do dia 19 de Theptar.
Athor olhou, furioso, para o repórter da Crônica. Conseguiu controlar-se com esforço.
— O senhor aqui? Depois de tudo que disse? É muita audácia!
Theremon havia estendido a mão como se realmente esperasse que Athor a apertasse. Logo, porém, recolheu-a e ficou olhando para o diretor do Observatório com surpreendente despreocupação.
Com a voz trêmula de raiva contida, Athor exclamou:
— Sua presença aqui esta noite é uma afronta!
De um canto do quarto, Beenay, depois de passar a língua nos lábios, interveio nervosamente:
— Professor, apesar de tudo…
— Foi você quem o convidou? Não sabe que proibi expressamente…
— Professor, eu…
— Quem me convidou foi a Dra. Siferra — disse Theremon. — Ela insistiu para que eu viesse.
— Siferra? Siferra? Não acredito. Ela disse-me há pouco tempo que o considerava um tolo irresponsável. Falou do senhor usando termos que eu não gostaria de repetir. – Athor olhou em volta. — A propósito: onde está ela? Devia estar aqui, não devia? — Ninguém disse nada. Voltando-se para Beenay, Athor disse: — Foi você que trouxe este jornalista, Beenay. Seu comportamento é inexplicável. Este não é momento para insubordinações. O Observatório está fechado para repórteres esta noite. E faz muito tempo que está fechado para este repórter em particular. Por favor, mostre-lhe a saída.
— Sr. Diretor — disse Theremon -, se me deixar explicar as razões…
— Nada do que tem a dizer poderia compensar o que escreveu diariamente em sua coluna durante os últimos dois meses. O senhor comandou uma vasta campanha jornalística com o objetivo de impedir que eu e meus colegas preparássemos o mundo para o perigo que teremos que enfrentar daqui a pouco. Fez o que pôde, com seus ataques altamente pessoais, para ridicularizar os funcionários deste Observatório.
Pegou na mesa um exemplar da Crônica e o brandiu, furioso, na direção de Theremon.
— Mesmo uma pessoa com a sua conhecida desfaçatez deveria hesitar antes de vir aqui pedir permissão para cobrir os acontecimentos de hoje para o seu jornal. De todos os repórteres, logo o senhor!
Athor jogou o jornal no chão, aproximou-se da janela e colocou os braços atrás das costas.
— Beenay, tire-o daqui.
A cabeça de Athor estava latejando. Era importante, ele sabia, manter a raiva sob controle. Não podia permitir que nada distraísse sua atenção do evento cataclísmico que estava para ocorrer. Olhou, pensativo, para a silhueta dos edifícios da cidade de Saro e procurou acalmar-se. Onos estava se pondo. Sua luz já era fraca por causa da proximidade do horizonte.
Athor sabia que jamais tornaria a vê-lo, em seu juízo perfeito.
A luz branca e fria de Sitha também era visível, baixa no céu, muito longe da cidade, no lado oposto do horizonte. Tano, o sol gêmeo de Sitha, já havia se posto.
Estava agora iluminando o céu do outro hemisfério, onde em breve ocorreria o fenômeno extraordinário de um dia de cinco sóis. O próprio Sitha estava para se pôr. Mais alguns momentos e desapareceria.
Atrás dele, ouviu Beenay e Theremon conversando em voz baixa.
— Esse homem ainda está aí? — perguntou, em tom ameaçador.
— Professor, acho que deveria ouvir o que ele tem a dizer — argumentou Beenay.
— Acha mesmo? Acha que eu deveria ouvi-lo? — Athor voltou-se para encarar o assistente. Seus olhos brilhavam de raiva. — Oh, não, Beenay. Não, é ele que vai me escutar! Fez um gesto peremptório para o jornalista, que não havia feito nenhuma menção de se retirar. — Venha cá, rapaz! Vai ter a sua reportagem.
Theremon aproximou-se devagar. Athor apontou para fora.
— Sitha vai se pôr a qualquer momento. Não, já se pôs. Onos também vai desaparecer em breve. Dos seis sóis, vai ficar apenas Dovim. Está vendo Dovim?
A pergunta era desnecessária. O pequeno sol vermelho parecia ainda menor naquela noite. Entretanto, estava quase no zênite, e sua luz rubra inundava a paisagem, produzindo um efeito extraordinário, enquanto os raios brilhantes de Onos desapareciam. O rosto de Athor refletia a luz de Dovim.
— Em pouco menos de quatro horas, a civilização, como a conhecemos, vai desaparecer — disse para o repórter. — Isto porque, como está vendo, Dovim será o único sol no céu. — Olhou para o horizonte com os olhos semicerrados. Os últimos raios amarelos de Onos haviam desaparecido. — Pronto. Dovim está só! Temos quatro horas, apenas, até tudo terminar. Escreva isto! Infelizmente, não haverá ninguém para ler.
— E se as quatro horas se passarem… e outras quatro… e nada acontecer? — perguntou Theremon, tranquilamente.
— Não se preocupe. Vai acontecer muita coisa, eu lhe asseguro.
— Talvez. E se não acontecer?
Athor parecia a ponto de perder a paciência.
— Se não for embora agora, e se Beenay se recusar a tirá-lo daqui, vou chamar os guardas da universidade e… Não. Na última noite de civilização, devemos agir de maneira civilizada. Tem cinco minutos, rapaz, para dizer o que deseja. Depois de ouvi-lo, caberá a mim decidir se pode ficar para ver o eclipse. Se eu decidir que não, irá embora na mesma hora. Entendeu?
Theremon hesitou apenas por um momento.
— É justo.
Athor tirou o relógio do bolso.
— Cinco minutos.
— Ótimo! Primeira coisa: que diferença faria se o senhor me permitisse assistir pessoalmente ao que está para acontecer? Se sua previsão se concretizar, minha presença não causará mal algum, pois, nesse caso, minha coluna jamais será escrita. Por outro lado, se nada acontecer, o senhor será forçosamente exposto ao ridículo ou coisa pior. Seria mais sábio deixar esse ridículo em mãos amigas.
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