— Deixando as pessoas malucas? — Beenay olhou significativamente para o calendário na parede do corredor, que anunciava, em caracteres verde luminosos: THEPTAR 19.
O dia dos dias, a data que não saía da cabeça dos funcionários do Observatório, mês após mês. O último dia de sanidade mental para muitos, talvez todos os habitantes de Kalgash.
— Não foi uma expressão muito feliz para você usar no dia de hoje, não acha?
Theremon sorriu.
— Talvez não. Veremos. — Apontou para a porta fechada do escritório de Athor. — Quem está aí dentro?
— O Dr. Athor, é claro. E minha colega Thilanda, Davnit, Simbron, Hikkinan, todos funcionários do Observatório. Acho que é só.
— E Siferra? Ela me disse que viria.
— Pois ainda não chegou.
Uma expressão de surpresa apareceu no rosto de Theremon.
— Verdade? Quando lhe perguntei outro dia se preferia ficar no Abrigo, praticamente riu na minha cara. Estava firmemente disposta a assistir ao eclipse daqui. Não acredito que tenha mudado de ideia. Aquela mulher não tem medo de nada, Beenay. Bem, talvez esteja resolvendo algumas coisas de última hora no seu escritório.
— É provável.
— E nosso amigo Sheerin? Também não está aqui?
— Não. Sheerin está no Abrigo.
— A coragem não é uma de suas qualidades, hein? Pelo menos ele tem o bom senso de admitir isso. Raissta também está no Abrigo, com Nyilda, a mulher de Athor, e quase todo mundo que eu conheço, exceto os funcionários do Observatório. Se você fosse esperto, também estaria lá, Theremon. Quando a Escuridão chegar, você vai se arrepender de não ter ouvido nossos conselhos.
— Folimun 66, aquele Apóstolo, me disse a mesma coisa há cerca de um ano. Só que o Abrigo que estava me oferecendo era outro. Acontece, amigo, que estou preparado para enfrentar os piores horrores que os deuses tenham reservado para mim. Esta noite, aconteça o que acontecer, vai haver assunto para uma boa reportagem, e eu não poderia fazer uma boa cobertura se estivesse escondido em uma toca debaixo da terra, não é mesmo?
— Não vai haver nenhum jornal amanhã para publicar a sua reportagem, Theremon.
— Você acha mesmo? — Theremon pegou Beenay pelo braço e aproximou-se até que os narizes dos dois quase se tocaram. — Diga-me uma coisa, Beenay. De amigo para amigo. Acha realmente que uma coisa incrível como essa Escuridão vai acontecer daqui a pouco?
— Acho, sim.
— Puxa! Você está falando sério?
— Nunca falei tão sério em minha vida, Theremon.
— Não consigo acreditar. Você parece tão sensato, Beenay. Tão lógico, tão responsável. No entanto, pega um monte de cálculos astronômicos reconhecidamente especulativos, alguns pedaços de carvão escavados em um deserto a milhares de quilômetros daqui, os loucos devaneios de uma seita de fanáticos, mistura tudo e me saí com o mais absurdo coquetel apocalíptico que eu já tive oportunidade de…
— Não é absurdo — insistiu Beenay, tranquilamente. — Faz muito sentido.
— Quer dizer que o mundo realmente vai terminar esta noite.
— O mundo que nós conhecemos e amamos, sim. Theremon largou o braço de Beenay e levantou os braços, exasperado.
— Puxa! Até você! Beenay, há mais de um ano que estou tentando levar esse negócio a sério, mas não consigo. Simplesmente não consigo. Por mais que vocês falem, você, Athor, Siferra, Folimun 66, Mondior e…
— É só esperar — disse Beenay. — Vai acontecer daqui a algumas horas.
— Você está falando sério! — exclamou Theremon, em tom incrédulo. — Sabe de uma coisa? Está se revelando um fanático tão grande quanto o próprio Mondior. Bah! É isso que eu digo, Beenay. Bah! Leve-me à presença de Athor, está bem?
— Ele não vai gostar de ver você aqui. Estou avisando.
— Você já me disse isto. Mesmo assim, quero falar com ele.
Theremon não esperava nunca uma posição contrária à dos cientistas do Observatório. As coisas simplesmente tinham acontecido daquela forma, nos meses que precederam o dia 19 de Theptar.
Era uma questão de integridade jornalística, disse para si próprio. Beenay era um amigo de longa data o Dr. Athor era, sem dúvida, um grande astrônomo e Siferra era… bem, Siferra era uma mulher atraente e interessante, além de arqueóloga de renome. Theremon não tinha interesse em antagonizar aquelas pessoas. Entretanto, tinha que escrever o que pensava. E o que pensava, sem a menor sombra de dúvida, era que o grupo do Observatório estava sendo tão irresponsável quanto os Apóstolos do Fogo, e tão perigoso quanto eles para a estabilidade da sociedade.
Não havia maneira possível de levar a sério o que afirmavam. Quanto mais tempo passava no Observatório, mas absurda lhe parecia toda a situação.
Um planeta invisível e aparentemente impossível de detectar, vagando no céu em uma órbita tal que se aproximava de Kalgash algumas vezes em cada século? Uma configuração especial dos sóis que deixaria Dovim sozinho no céu na próxima vez em que o planeta invisível se aproximasse? A luz de Dovim bloqueada pelo planeta, fazendo com que Kalgash fosse tomado pela Escuridão? A Escuridão provocando uma loucura coletiva? Não, não, era demais.
Para Theremon, tudo aquilo parecia tão ridículo quanto as bobagens que os Apóstolos do Fogo vinham pregando há muitos anos. A única diferença era que os Apóstolos incluíam na história objetos misteriosos chamados Estrelas. O pessoal do Observatório, pelo menos, tinha o bom senso de admitir que não faziam a menor ideia do que eram as Estrelas. De acordo com os Apóstolos, eram outro tipo de corpos celestes invisíveis, que apareceriam de repente no céu quando o Ano de Divindade terminasse e a ira dos deuses se abatesse sobre Kalgash.
— Nisso eu não acredito — dissera Beenay certa noite, quando os dois tomavam um drinque no Clube Seis Sóis. Faltavam ainda seis meses para o eclipse. — No eclipse e na Escuridão, sim. Nas Estrelas, não. Não há nada no universo a não ser o nosso mundo, os seis sóis, alguns asteroides insignificantes… e Kalgash Dois, é claro. Se as Estrelas existem, por que não podemos perceber sua presença? Por que não perturbam a órbita de nosso planeta, como Kalgash Dois? Não, Theremon, se as Estrelas existissem, teria que haver um erro na Teoria da Gravitação Universal. E sabemos que a teoria está certa.
— Sabemos que a teoria está certa — afirmara Beenay. Mas não era a mesma coisa que Folimun declarar: “Sabemos que o Livro das Revelações está dizendo a verdade”?
No começo, quando Beenay e Sheerin contaram-lhe que estava para ocorrer um período de Escuridão que seria catastrófico para a humanidade, Theremon, meio céptico, meio impressionado pelas visões apocalípticas dos dois cientistas, fizera o possível para ajudá-los.
— Athor precisa ter uma conversa com Folimun — dissera Beenay. — Ele quer saber se os Apóstolos dispõem de registros astronômicos antigos que possam confirmar nossas teorias. Você pode conseguir uma entrevista para ele?
— É curioso — dissera Theremon. — O velho e intolerante cientista disposto a trocar ideias com o porta-voz das forças da anticiência. Mas verei o que posso fazer.
Na verdade, tinha sido surpreendentemente fácil marcar o encontro. Theremon tinha combinado entrevistar Folimun mais uma vez. O Apóstolo marcou uma audiência para o dia seguinte.
— Athor? — disse Folimun, quando o jornalista comunicou-lhe que Athor compareceria em seu lugar. — O que ele teria para falar comigo?
— Talvez pretenda se tornar um Apóstolo — sugeriu Theremon, em tom de brincadeira.
Folimun riu.
— Acho pouco provável. Pelo que eu conheço dele, preferiria pintar o corpo de roxo e desfilar sem roupa pela Avenida Saro.
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