— Se não me engano, isto se chama cozinhar os dados acrescentou Theremon.
— A mim, parece suspeito — observou Sheerin . — Quando você não gosta dos dados experimentais, trata de modificá-los, não é, Beenay? O ajuste tem que ser perfeito, por bem ou por mal?
— Não é exatamente isto que…
— Admita! Admita! — Sheerin deu uma gargalhada. Garçom! Mais um neltigir! E mais um Tano Especial para meu jovem amigo aqui! Theremon, posso pedir um para você também?
— Por favor.
— Estou desiludido com você, Beenay — disse Sheerin , no mesmo tom de brincadeira. — Pensei que nós psicólogos éramos os únicos a fazer os dados coincidirem com as teorias e chamar o resultado de “ciência”. Isto parece mais coisa dos Apóstolos do Fogo!
— Sheerin! Pare!
— Os Apóstolos também se consideram cientistas — observou Theremon. Beenay e Sheerin olharam para ele. — Na semana passada, antes da chuva começar, entrevistei um dos chefes da organização. Tinha esperança de falar com Mondior, mas quem me recebeu foi um tal de Folimun 66, uma espécie de relações públicas, um sujeito muito melífluo, muito inteligente, muito prestativo. Passou meia hora explicando-me que os Apóstolos possuem provas científicas de que no dia 19 de Theptar do ano que vem os sóis vão apagar, nosso planeta vai ser mergulhado na Escuridão e todos vão ficar malucos.
— O mundo inteiro vai se transformar em um grande Túnel do Mistério, não é? — disse Sheerin, em tom jovial. — Não temos hospícios suficientes para toda a população, você sabe. Nem psiquiatras suficientes para cuidar de todos. Além disso, os psiquiatras vão ficar malucos, também.
— Já não são? — perguntou Beenay.
— Isto é verdade — concordou Sheerin.
— O pior não é a loucura — disse Theremon. — De acordo com Folimun, o céu vai ficar cheio de coisas chamadas Estrelas, que vão despejar fogo sobre nós, incendiando tudo. Aqui estaremos, um bando de loucos, vagando sem rumo em nossas cidades em chamas. Ainda bem que tudo isso é apenas um pesadelo de Mondior.
— E se não for? — disse Sheerin, subitamente sério. Seu rosto redondo assumiu uma expressão pensativa. — E se houver um fundo de verdade no que dizem os Apóstolos?
— Que ideia apavorante — disse Beenay. — Acho que exige mais um drinque.
— Você ainda não terminou o último — observou Sheerin, olhando para o copo do jovem astrônomo.
— E daí? Sua ideia exige mais um drinque depois que este acabar. Garçom! Garçom!
Athor 77 sentiu a fadiga tomar conta do seu corpo. O diretor do Observatório perdera toda a noção do tempo. Havia realmente trabalhado dezesseis horas sem parar?
Na véspera, tinha sido a mesma coisa. E no dia anterior…
Pelo menos, era disso que Nyilda se queixava. Tinha acabado de conversar com ela. O rosto da esposa na tela refletia a sua preocupação.
— Não vem para casa descansar, Athor? Está trabalhando praticamente sem parar.
— Estou?
— Você não é mais nenhuma criança.
— Mas ainda me resta muita energia, Nyilda. E este trabalho é apaixonante. Depois de dez anos assinando relatórios de pesquisa e lendo artigos escritos por outras pessoas, estou fazendo de novo aquilo que gosto. É muito bom.
Ela pareceu ainda mais preocupada.
— Na sua idade, você não precisa mais fazer pesquisa. Sua reputação está garantida, Athor!
— Está?
— Seu nome tem lugar garantido na história da astronomia.
— Como herói ou como vilão? — replicou, fatal.
— Athor, não entendo o que você…
— Calma, Nyilda. Eu não vou morrer de tanto trabalhar, acredite. Estou me sentindo vinte anos mais jovem. E é um trabalho que só eu posso fazer. Se isso parece pretensão de minha parte, que seja, mas é absolutamente essencial que eu…
Nyilda suspirou.
— Está bem. Você é quem sabe. Mas não exagere, Athor. É tudo que eu peço.
Será que estava exagerando?, perguntou-se Athor. Sim, sim, claro que estava. Não havia outro jeito. Em questões como aquela, não havia meias-medidas. Tinha que se dedicar de corpo e alma ao problema. Quando estava desenvolvendo a Teoria da Gravitação Universal, trabalhara dezesseis, dezoito, vinte horas por dia durante semanas a fio, dormindo apenas quando o sono era inevitável, limitando esse sono a curtos cochilos e acordando ansioso para trabalhar, com a mente ainda borbulhando com as equações que deixara inacabadas alguns momentos antes.
Mas, na época, tinha apenas 35 anos. Agora, estava chegando aos 70. Era impossível ignorar os efeitos da idade. Sua cabeça doía, a garganta estava seca e sentia uma pressão no peito. Embora fizesse calor no escritório, as pontas dos seus dedos estavam geladas. Os joelhos estavam latejando. Todo o seu corpo protestava contra os excessos a que estava sendo submetido. Vou ficar só mais um pouquinho, prometeu a si mesmo, e depois irei para casa.
Só mais um pouquinho. Oitavo Postulado…
— Professor?
— Quem é? — perguntou.
Mas a sua voz devia ter transformado a pergunta em uma espécie de rosnado feroz, porque quando levantou a cabeça, Yimot estava na porta, fazendo uma série de estranhas contorções, como se estivesse pisando em brasas. Havia medo nos olhos do rapaz. A verdade era que Yimot sempre ficava nervoso na presença do diretor do Observatório. Todos ficavam, não apenas os estudantes. Athor já estava acostumado com isso. Aquilo, porém, passava das medidas. Yimot estava olhando para ele com uma mistura de terror e perplexidade. O jovem estudante lutou visivelmente para recuperar a voz e disse, com dificuldade:
— Aqui estão os cálculos que o senhor queria.
— OH. Sim. Sim. Passe para cá.
A mão de Athor tremia violentamente quando ele a estendeu para pegar as listagens. Os dois olharam para ela, fascinados. Os dedos longos e ossudos estavam mortalmente pálidos e se agitavam de uma forma que nem mesmo Yimot, conhecido pela violência de suas reações nervosas, conseguiria igualar. Athor fez força para controlar os movimentos da mão, mas era como se estivesse tentando fazer Onos inverter seu movimento no céu. Tirou com dificuldade os papéis da mão de Yimot e colocou-os sobre a mesa.
— Posso trazer alguma coisa para o senhor? — perguntou Yimot.
— Um remédio? Como se atreve a…
— Estava pensando em alguma coisa para comer, ou talvez um refrigerante — disse Yimot, com um fio de voz. Ele recuou devagar, como se esperasse que Athor soltasse um rugido e pulasse em seu pescoço.
— Ah! Entendo. Não, estou muito bem, Yimot. Muito bem!
— Sim, senhor.
O estudante saiu. Athor fechou os olhos por um momento, respirou fundo três ou quatro vezes e procurou acalmar-se. Estava quase terminando. Aqueles cálculos que havia encomendado a Yimot provavelmente eram a última prova de que precisava. A questão agora era saber se o trabalho iria acabar com ele antes que tivesse tempo de acabar o trabalho.
Olhou para os cálculos de Yimot.
Diante de sua mesa havia três telas. A da esquerda mostrava a órbita de Kalgash calculada de acordo com a Teoria da Gravitação Universal, desenhada em vermelho.
Na tela da direita, em amarelo, estava a órbita que Beenay havia levantado com o auxilio do novo computador da universidade, usando as observações mais recentes da posição de Kalgash. Na tela do meio, as duas órbitas tinham sido superpostas. Nos últimos cinco dias, Athor havia testado várias hipóteses para explicar a diferença entre a órbita teórica e a experimental, e podia colocar qualquer uma dessas sete hipóteses para a tela do meio com o simples apertar de uma tecla.
O problema era que nenhuma das sete fazia sentido, e ele sabia disso. Todas continham um defeito fatal: uma suposição que estava ali não porque fosse natural, mas porque era necessária para que a teoria correspondesse às observações. Nenhuma delas podia ser provada, nenhuma delas podia ser confirmada. Era como se em cada caso ele simplesmente tivesse decidido, em algum ponto da dedução, que uma fada madrinha entrasse em ação e ajustasse as interações gravitacionais para anular a diferença. Na verdade, era exatamente o que Athor estava procurando.
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