— E a cidade de Beklimot não mostra nenhum sinal de incêndio? — perguntou Beenay.
— Não. Isso provavelmente quer dizer que ainda não existia quando a cidade mais recente da colina de Thombo foi destruída. Mais tarde, a cultura de Beklimot entrou em decadência, e Beklimot foi abandonada, mas isso aconteceu por outros motivos, especialmente fatores climáticos. O fogo não teve nada a ver com isso. Beklimot foi abandonada há cerca de mil anos, mas o incêndio que destruiu a última cidade de Thombo parece ter ocorrido muito antes. De acordo com minhas estimativas, mil anos antes. Quando analisarmos as amostras de carvão pela técnica do radio carbono, teremos números mais precisos.
— E a civilização que construiu a cidade no estilo hachurado? É muito antiga?
— A crença arqueológica ortodoxa diz que as ruínas no estilo hachurado que encontramos em sítios esparsos na península de Sagikan são apenas algumas gerações mais antigas do que as de Beklimot. Depois da descoberta de Thombo, não penso mais assim. Em minha opinião, a cidade construída no estilo hachurado é dois mil anos mais antiga que a cidade ciclópica.
— Dois mil… ? E está dizendo que encontrou cidades ainda mais antigas?
— Veja o mapa — disse Siferra. — Aqui está a cidade número três… um estilo de arquitetura totalmente desconhecido, bem diferente do estilo hachurado. Depois, outra linha preta. A cidade número quatro. Outra linha preta. A cidade número cinco. Outra linha preta. Depois, as cidades número seis, sete, oito e nove… se bem que, de acordo com Balik, as duas últimas não existem a não ser na minha imaginação.
— E todas elas destruídas por um grande incêndio! Isso é incrível! Um ciclo de destruição e reconstrução no mesmo lugar.
— O que é ainda mais interessante — observou Siferra em tom sombrio -, é que cada uma dessas cidades parece ter prosperado por um período de tempo semelhante antes de ser destruída pelo fogo. As camadas de ruínas têm todas praticamente a mesma espessura. Ainda não temos os resultados dos testes de laboratório, mas acho que minhas estimativas iniciais não podem estar muito erradas. E as avaliações de Balik são parecidas com as minhas. A menos que estejamos totalmente enganados, estamos diante de pelo menos quatorze mil anos da pré-história. Durante esses quatorze mil anos, a colina de Thombo foi periodicamente varrida por incêndios gigantescos, que arrasaram totalmente as cidades que os habitantes da área haviam construído. Mais ainda: esses incêndios ocorreram com incrível regularidade, um a cada dois mil anos!
— O quê?
Beenay sentiu um arrepio na espinha. Estava chegando a uma conclusão assustadora.
— Espere — disse Siferra. — Ainda não terminei. Abriu uma gaveta e tirou um maço de fotografias.
— Essas são fotografias das tabuinhas de Thombo. Mudrin 505 (o paleógrafo, você sabe) está com os originais. Ele está tentando decifrá-las. São feitas de barro cozido. Encontramos estas três no Terceiro Nível, e estas no Quinto Nível. Mudrin não conseguiu nada com as mais antigas, mas está fazendo algum progresso com as do Terceiro Nível. Parece que foram escritas em uma versão primitiva do alfabeto de Beklimot. Até agora, o que ele pode dizer é que falam da destruição da cidade pelo fogo. Dizem que foi provocada pelos deuses, que periodicamente são obrigados a punir a humanidade por seus pecados.
— Periodicamente?
— Isso mesmo. Está começando a compreender?
— Os Apóstolos do Fogo! Meu Deus, Siferra, que significa isso?
— É o que tenho me perguntado desde que Mudrin me mostrou as primeiras traduções. — A arqueóloga se voltou para encarar Beenay, e o rapaz notou pela primeira vez as suas olheiras, a expressão tensa e preocupada em seu rosto. — Entende agora por que pedi que viesse aqui? Não posso conversar sobre isso com nenhum dos meus colegas de departamento. Beenay, que vou fazer? Se esta descoberta vier a público, Mondior 71 e seu bando de fanáticos vão proclamar aos sete ventos que eu descobri uma prova incontestável de suas teorias!
— E você concorda?
— Tenho alternativa? — Siferra apontou para os mapas. Aqui estão as provas de que várias cidades foram destruídas pelo fogo a intervalos de dois mil anos, aproximadamente, em um período de muitos milhares de anos. E essas tabuinhas… ao que tudo indica… podem ser uma versão pré-histórica do Livro das Revelações. No conjunto, essas descobertas representam, se não uma confirmação das histórias dos Apóstolos, pelo menos uma sólida base histórica para a origem dos seus mitos!
— O fato de um local ter sofrido repetidos incêndios não significa que a devastação tenha sido em escala mundial objetou Beenay.
— É a periodicidade que me preocupa — disse Siferra.
— Corresponde muito de perto às afirmações de Mondior. Dei uma olhada no Livro das Revelações. Você sabia que a península de Sagikan é um lugar sagrado para os Apóstolos? Dizem que é o lugar onde os deuses apareceram para a humanidade. E, portanto, natural… preste atenção, é natural — insistiu, com um sorriso amargo — que os deuses tenham preservado Sagikan como uma advertência para a humanidade do castigo que cairá sobre nós vez após vez se não nos corrigirmos.
Beenay olhou para ela, surpreso.
Na verdade, conhecia muito pouco a respeito dos Apóstolos e seus ensinamentos. Nunca se interessara por aquele tipo de fantasias patológicas, e estivera ocupado demais com seu trabalho científico para prestar atenção nas profecias apocalípticas de Mondior. Agora, porém, a conversa que tivera semanas antes com Theremon 762, no Clube Seis Sóis, adquiria um novo significado. “ … não será a primeira vez em que o mundo é destruído… os deuses deliberadamente fizeram o homem imperfeito e nos deram um único ano (um dos seus anos divinos, não dos nossos pequenos anos) para chegarmos à perfeição. É o chamado Ano de Divindade, e corresponde a exatamente 2049 dos nossos anos. “ Não. Não. Não. Não. Bobagem! Loucura! Havia mais. “ Vez após vez, quando o Ano de Divindade termina, os deuses descobrem que ainda somos maus e pecadores e destroem o mundo fazendo chover fogo de lugares sagrados no céu chamados Estrelas. Assim dizem os Apóstolos. Não! Não!
— Beenay? — disse Siferra. — Tudo bem com você?
— Estou só pensando. Sabe que você está certa? Esta história serviria para confirmar tudo que os Apóstolos sempre pregaram!
— Não necessariamente. As pessoas de bom senso ainda poderiam rejeitar as ideias de Mondior. Afinal, a destruição de Thombo pelo fogo, ou mesmo a destruição repetida de Thombo, a intervalos de aproximadamente dois mil anos, não prova de modo algum que o mundo inteiro tenha sido destruído pelo fogo. Ou que venha a sê-lo no futuro. Por que o passado teria que ser repetido no futuro? Entretanto, as pessoas de bom senso estão em minoria. O resto da população consideraria minhas descobertas como uma confirmação das palavras de Mondior e se deixaria contagiar pelo pânico. Você sabia que, de acordo com os Apóstolos, o próximo grande incêndio vai ocorrer no ano que vem?
— Sabia — disse Beenay, em um tom grave. — Theremon contou-me que eles previram o dia exato em que isso vai acontecer. Na verdade, o ciclo tem 2049 anos, e este é o ano 2048. Daqui a onze ou doze meses, segundo Mondior, o céu vai ficar escuro e o fogo vai descer sobre nós. Acho que o dia fatídico é 19 de Theptar.
— Theremon, você disse? O repórter?
— Isso mesmo. Ele é meu amigo. Está interessado em toda essa questão dos Apóstolos e entrevistou um dos sumos sacerdotes da organização ou coisa parecida. Theremon disse-me que…
Siferra segurou Beenay pelo braço com força surpreendente.
Читать дальше