— Levá-las? — exclamou Siferra, como se tivesse pedido seus dedos emprestados.
— É a única forma de decifrá-las.
— Acha que tem condição de decifrá-las? — perguntou Balik.
— Não sei. Se este caractere é um tifjak e este aqui um quhas, provavelmente conseguirei encontrar outras letras semelhantes às que existem no alfabeto de Beklimot e preparar pelo menos uma transliteração. Isso não garante, porém, que eu seja capaz de compreender o que está escrito. E duvido que seja capaz de conseguir alguma coisa com as tabuinhas retangulares. Mas deixe-me tentar, Siferra. Deixe-me tentar.
— Está bem. Tome.
Ela recolheu as tabuinhas com todo o cuidado e colocou-as na caixa em que tinham vindo de Sagikan. Era penoso separar-se delas, mas Mudrin tinha razão. Não podia fazer nada sem examiná-las em seu laboratório, só com uma rápida olhada. Observou, com tristeza, o velho paleógrafo se retirar, apertando contra o peito o precioso material. Ela e Balik estavam sozinhos de novo.
— Siferra… a respeito do que eu lhe disse…
— Não lhe pedi para esquecer? Eu já me esqueci. Agora, se me permite, tenho muito que fazer.
— Como foi que ele reagiu? — perguntou Theremon. — Melhor do que você esperava, não foi?
— Maravilhosamente — respondeu Beenay. Estavam no terraço do Clube Seis Sóis. A chuva tinha parado e fazia uma noite bonita, com a estranha claridade da atmosfera que sempre vinha depois de um período prolongado de chuva. Tano e Sitha estavam a oeste, projetando sua fria luz branca com intensidade maior do que a normal, e Dovim do lado oposto do céu, brilhando como um rubi. — Só ficou zangado quando eu disse que me sentira tentado a ocultar minha descoberta para não ferir seus sentimentos. Aí ele me passou uma descompostura com toda razão. Mas o mais engraçado foi… Garçom! Garçom! Um Tano Especial para mim, por favor! E um para o meu amigo. Pode ser duplo!
— Você está se tornando um beberrão, sabia? — observou Theremon.
Beenay deu de ombros.
— Só bebo quando estou aqui. Há alguma coisa neste terraço, na vista da cidade, na atmosfera do lugar…
— É assim que começa. O vício vem aos poucos. Você desenvolve associações agradáveis entre a bebida e um certo ambiente. Depois, resolve beber um drinque ou dois em outro lugar. Logo passa a ser um drinque ou três. Aí…
— Theremon! Você está parecendo um Apóstolo do Fogo! Eles acham que beber é pecado, não acham?
— Eles acham que tudo é pecado. Mas, no caso da bebida, têm toda razão. É por isso que beber é tão gostoso, não é, amigo? — Theremon riu. — Você estava falando do Dr. Athor.
— É mesmo. Aconteceu uma coisa engraçada. Você se lembra daquela sua ideia de que algum fator desconhecido poderia estar modificando a órbita de Kalgash, tornando-a diferente da órbita prevista?
— Claro que eu me lembro. Um gigante invisível. Ou o bafo de um dragão.
— Pois o Dr. Athor pensa igual a você!
— Ele acha que existe um gigante no céu?
Beenay deu uma gargalhada.
— Claro que não! Mas ele atribui a diferença a algum fator desconhecido. Um sol apagado, ou um outro astro localizado em uma posição tal que não podemos vê-lo, mas que mesmo assim exerce uma força gravitacional sobre Kalgash…
— Não acha essa explicação um pouco forçada? — perguntou Theremon.
— Acho sim. Mas o Dr. Athor me fez recordar a velha máxima da Espada de Thargola. É uma espada que usamos, metaforicamente, é claro, para eliminar as premissas mais complexas, quando estamos tentando decidir que hipótese devemos adotar. É mais simples sair à procura de um astro desconhecido do que criar uma nova Teoria da Gravitação Universal. Assim…
— Um sol apagado? Mas isto não é uma contradição? Os sóis são fontes de luz. Se um astro não emite luz, como pode ser um sol?
— Esta é apenas uma das possibilidades sugeridas pelo Dr. Athor. Não é necessariamente a que ele leva mais a sério. O que temos feito nos últimos dias é brincar com todo o tipo de ideias para ver se encontramos alguma que explique os… Olhe, lá está Sheerin! — Beenay acenou para o psicólogo, que acabara de entrar no clube. — Sheerin ! Sheerin! Venha tomar um drinque conosco!
Sheerin aproximou-se dos dois, passando com cuidado pela estreita entrada.
— Arranjando novos vícios, Beenay?
— Nem tanto. Mas Theremon me apresentou ao Tano Especial e acho que foi amor à primeira vista. Você conhece Theremon, não conhece? Ele escreve para a Crônica.
— Acho que nunca fomos apresentados — disse Sheerin, estendendo a mão para o repórter. — Claro que conheço você de nome. Sou tio de Raissta 717.
— E professor de psicologia — disse Theremon. — Esteve há pouco tempo na Exposição de Jonglor, não esteve?
Sheerin pareceu surpreso.
— Você sabe de tudo que acontece?
— Procuro saber. — O garçom estava de volta. — Que vai querer? Um Tano Especial?
— É forte demais para mim — disse Sheerin. — E um pouco doce demais, também. Por acaso vocês têm neltigir?
— O conhaque de Jonglor? Vou ter que verificar. Como vai querer, se eu conseguir encontrar?
— Puro, por favor — disse Sheerin. E voltando-se para Theremon e Beenay: — Eu me acostumei a beber neltigir quando estive no norte. A comida em Jonglor é horrível, mas pelo menos eles têm um conhaque decente.
— Ouvi dizer que estão tendo problemas na Exposição — disse Theremon. — Alguma coisa no parque de diversões… um passeio no escuro que estava deixando as pessoas malucas…
— É o Túnel do Mistério. Foi por isso que eu estive lá. Os administradores do parque me chamaram para opinar como perito.
Theremon inclinou-se para a frente.
— É verdade que algumas pessoas morreram de choque naquele Túnel e mesmo assim ele continuou funcionando?
— Todo mundo me pergunta isso — replicou Sheerin. — Houve algumas mortes, sim. Isto, porém, só serviu para tornar o Túnel ainda mais popular. As pessoas insistiam em correr o risco. Algumas ficaram muito perturbadas. Eu mesmo resolvi fazer o passeio para ver como era — disse, estremecendo. — Seja como for, agora está parado. Eu disse a eles que se não fechassem o brinquedo, teriam que pagar milhões de créditos de indenização. As pessoas simplesmente não podem suportar a Escuridão por tanto tempo. Eles acabaram entendendo.
— Encontrei o neltigir que o senhor pediu — interrompeu o garçom, colocando um copo de conhaque na mesa, à frente de Sheerin. — Mas só temos uma garrafa, de modo que é melhor o senhor ir com calma.
O psicólogo fez que sim com a cabeça, pegou o copo e bebeu metade do conteúdo de um só gole, antes que o garçom se afastasse da mesa.
— Eu disse ao senhor que…
Sheerin sorriu.
— Ouvi o que você disse. Vou tomar o segundo copo mais devagar. — Voltou-se para Beenay. — Soube que o Observatório está em polvorosa. Liliath me contou. Mas ela não soube me explicar direito o que está acontecendo. Tem a ver com uma nova teoria, se não me engano…
— Theremon e eu estávamos conversando justamente sobre isso — disse Beenay, sorrindo. — Não é uma nova teoria, não. São resultados experimentais que não estão de acordo com uma teoria antiga. Eu estava calculando a órbita de Kalgash e…
Sheerin ouviu a história com surpresa crescente.
— A Teoria da Gravitação Universal está errada? — exclamou, quando Beenay chegou na metade. — Puxa vida! Isso quer dizer que seu largar o meu copo, ele pode sair flutuando? Nesse caso, é melhor beber o resto do meu neltigir enquanto posso!
Foi o que fez. Beenay riu.
— A teoria ainda está nos livros. O que estamos tentando fazer, ou por outra, o que o Dr. Athor está tentando fazer, como chefe do projeto, é descobrir uma explicação matemática para o fato de que nossos resultados experimentais não concordam com as previsões teóricas.
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