Em Sagikan, cada gota de água era um tesouro. O uso, do líquido era racionado e sempre que possível a água era reciclada. Agora, ali estava, caindo do céu com se viesse de um imenso reservatório que nunca iria secar. Siferra sentiu vontade de tirar toda a roupa e sair correndo pelo gramado do campus, deixando a água escorrer pelo corpo em uma deliciosa torrente sem fim, removendo os últimos resíduos da areia infernal do deserto.
Os alunos ficariam surpresos. A séria, distante, pouco romântica professora de arqueologia, Siferra 89, correndo nua na chuva! Quase que valia a pena fazer isso, só para ver a cara de surpresa dos estudantes aparecendo em todas as janelas: da universidade para apreciar a cena.
Melhor deixar para lá, pensou Siferra. Não faz o meu gênero.
Além disso, tinha muito que fazer. Não perdera tempo para começar a trabalhar. A maior parte dos artefatos que desenterrara em Beklimot tinham sido despachados em um navio de carga e levariam algumas semanas para chegar. Mas havia mapas para arrumar, esboços para terminar, fotografias de Balik para examinar, amostras de solo para preparar para serem analisadas em laboratório, um milhão de coisas para fazer. Além disso, queria discutir as tabuinhas de Thombo com Mudrin 505, do departamento de paleografia.
As tabuinhas de Thombo! A descoberta das descobertas, o maior achado em um ano e meio de buscas! Pelo menos, esta era a sua opinião. Naturalmente, tudo dependeria do que estivesse escrito nelas. Estava ansiosa para que Mudrin começasse a trabalhar na tradução. As tabuinhas eram, na pior das hipóteses, objetos fascinantes, entretanto, podiam ser muito mais. Se suas suspeitas se concretizassem, elas poderiam revolucionar todo o estudo do mundo pré-histórico. Era por isso que não confiara nos navios cargueiros, e transportara as tabuinhas pessoalmente, na própria bagagem.
Alguém bateu à porta.
— Siferra? Siferra, você está aí?
— Entre, Balik.
O estratigrafo de ombros largos estava ensopado.
— Esta maldita chuva — murmurou, sacudindo-se. Fiquei todo molhado só de vir do quarteirão da Biblioteca Uland até aqui.
— Estou adorando a chuva — disse Siferra. — Espero que não pare tão cedo. Passei meses no deserto, com os olhos sujos de areia o tempo todo, poeira na garganta, morrendo de calor e secura… não, deixe chover, Balik!
— É, mas estou vendo que você não se molhou. É muito mais fácil gostar de chuva quando se está em um lugar abrigado somente observando-a… Brincando de novo com suas tabuinhas, hein?
Ele apontou para as seis grossas tabuinhas de superfície irregular e de barro vermelho que Siferra havia arrumado na escrivaninha em dois grupos de três, as quadradas em uma carreira e as retangulares em outra carreira abaixo.
— Não são lindas? — disse Siferra, exultante. — Não consigo esquecê-las. Tenho a impressão de que se ficar olhando muito tempo, vou acabar compreendendo o que está escrito nelas.
Balik aproximou-se e sacudiu a cabeça.
— Para mim, não passam de arranhões.
— Pare com isso! Já identifiquei distintos padrões de palavras. E não sou nenhuma perita… Está vendo este grupo de seis caracteres? Está repetido ali. E esses três, com os cantos arredondados…
— Já mostrou a Mudrin?
— Ainda não. Pedi a ele para passar aqui daqui a pouco.
— Sabe que andam falando da sua descoberta, não sabe? Das cidades de Thombo, uma por cima da outra?
Siferra olhou para ele, surpresa.
— O quê? Quem…
— Um dos alunos — explicou Balik. — Não sei qual foi. Desconfio de Veloran, mas Eilis acha que foi Sten. Suponho que era inevitável. Você não concorda?
— Pedi-lhes para não dizer nada…
— Claro, mas eles são crianças, Siferra, o mais velho tem dezenove anos, e é sua primeira expedição arqueológica! A expedição descobre uma coisa extraordinária, sete cidades pré-históricas, de que ninguém tinha ouvido falar, uma por cima da outra, a mais velha com milhares de anos de idade…
— São nove cidades, Balik.
— Sete, nove, não faz diferença. E eu acho que são sete — insistiu Balik, com um sorriso.
— Eu sei o que você pensa. E está errado. Mas quem está falando a respeito? No departamento, quero dizer.
— Hilliko. Brangin, também. Ouvi quando conversavam esta manhã, na sala dos professores. Estão muito céticos, é bom que você saiba. Extremamente céticos. Acham impossível que haja uma cidade mais antiga que Beklimot naquela região, quanto mais nove, ou sete, ou seja qual for o número de cidades que você descobriu.
— Eles não viram as fotografias. Não viram os mapas. Não viram as tabuinhas. Não viram nada. E já têm uma opinião formada. — Os olhos de Siferra brilhavam de raiva. — O que é que eles sabem? Algum deles já esteve na península de Sagikan? Algum deles já esteve em Beklimot, mesmo como turista? E têm coragem de pôr em dúvida uma descoberta que ainda não foi publicada, que ainda não foi nem mesmo discutida informalmente dentro do departamento!
— Siferra…
— Sinto vontade de esfolar aqueles dois! E Veloran e Sten, também. Deviam ter mantido a boca fechada! Por que tinham que quebrar o sigilo? Mas eu vou mostrar a eles. Vou chamá-los aqui e descobrir exatamente quem foi que deixou a história vazar. E se um deles pensa que vai conseguir o título de doutor por esta universidade…
— Por favor, Siferra! — protestou Balik. — Você está se aborrecendo à toa.
— À toa! Estragaram tudo! Eu tinha que ser a primeira a…
— Ninguém estragou nada. Tudo vai continuar a ser apenas um boato até você estar preparada para sua exposição preliminar. Quanto a Veloran e Sten, não temos certeza se foi um dos dois, e mesmo que tenha sido, não se esqueça de que você já teve a idade deles.
— É verdade — concordou Siferra. — Três eras geológicas atrás.
— Não diga bobagens. Você é mais moça do que eu, e não me considero nenhum velho.
Siferra fez que sim, com indiferença. Olhou pela janela. De repente, a chuva não parecia agradável. Estava tudo escuro lá fora, opressivamente escuro.
— Mesmo assim, saber que nossa descoberta está sendo contestada, antes mesmo de ser publicada…
— Isso não é de admirar, Siferra. O que encontramos naquela colina vai fazer balançar a vida de muita gente… não só no nosso departamento, mas também nos departamentos de história, filosofia e até mesmo teologia. E pode apostar que eles lutarão até o fim para defender os pontos de vista tradicionais a respeito da história de nossa civilização. Você não faria o mesmo, se alguém aparecesse com uma ideia radical, totalmente em desacordo com tudo em que você sempre acreditou? Seja realista, Siferra. Sabíamos desde o começo que essa coisa daria muito que falar.
— Eu sei. Só que não esperava que acontecesse tão depressa. Ainda nem acabei de desfazer as malas.
— É esse o problema. Você voltou ao trabalho depressa demais. Devia ter descansado um pouco da viagem. Ei, tive uma ideia. Nós dois só começamos a dar aula daqui a duas semanas. Por que não fugimos da chuva e passamos o fim de semana juntos em algum lugar? Que tal ir a Jonglor para ver a Exposição? Ontem eu estava conversando com Sheerin e ele disse-me que está uma verdadeira…
A arqueóloga olhou para Balik, admirada.
— O quê?
— Estou convidando você a passar o fim de semana comigo.
— Isto é algum tipo de proposta amorosa, Balik?
— Você pode considerar assim, se quiser. Que há de tão incrível nisso? Não somos exatamente um par de estranhos. Nós nos conhecemos desde o tempo em que éramos estudantes. Acabamos de passar um ano e meio juntos no deserto.
— Juntos? Estávamos na mesma expedição, mas você tinha a sua tenda e eu, a minha. Nunca houve nada entre nós. E agora, sem mais nem menos…
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