«A nave está se movendo!» A notícia espalhou-se imediatamente por todos os cantos do planeta: «Está se dirigindo para oeste!»
A menos de mil quilômetros por hora, descendo lentamente das alturas vazias da estratosfera, a nave rumava para as grandes planícies e para o seu segundo rendez-vous com a história. Pousou obedientemente diante das câmeras e dos milhares de espectadores que se comprimiam, embora muito poucos pudessem ver mais do que os milhões reunidos em volta dos aparelhos de televisão.
O chão deveria ter estalado e estremecido sob o tremendo peso, mas a nave continuava presa às forças que lhe permitiam andar por entre as estrelas, e pousou tão suavemente como se fosse um floco de neve.
A parede curva, vinte metros acima do chão, deu a impressão de tremular e ondular: onde antes houvera uma superfície lisa e reluzente, aparecera uma grande abertura. Nada era visível dentro dela, mesmo aos olhos perscrutado-res das câmeras. Estava tão escuro quanto a entrada de uma caverna.
Uma escada larga e brilhante saiu do orifício e avançou na direção do solo. Parecia uma folha sólida de metal, com corrimãos de cada lado. Não tinha degraus; era inclinada e lisa como um escorregador e parecia impossível subi-la ou descê-la de maneira comum.
O mundo inteiro tinha os olhos fixos naquele pórtico escuro, esperando que algo aparecesse. Foi então que a voz, raramente ouvida, mas inesquecível, de Karellen ergueu-se de algum ponto escondido. Sua mensagem não poderia ser mais inesperada:
— Estou vendo algumas crianças aos pés da escada. Gostaria que duas delas subissem ao meu encontro.
Houve um momento de silêncio. Depois, um menino e uma menina saíram da multidão e encaminharam-se, com a maior naturalidade, para a escada e rumo à história. Outras os seguiram, mas pararam ao ouvir Karellen dizer, com uma risada:
— Duas serão suficientes.
Desejosas de aventura, as duas crianças — que não teriam mais que seis anos de idade — pularam sobre a plataforma de metal. Foi então que aconteceu o primeiro milagre.
Acenando alegremente para a multidão e para os pais aflitos — que, demasiado tarde, tinham provavelmente se lembrado da lenda do flautista de Hammelin — as crianças começaram a subir rapidamente a íngreme encosta. Mas suas pernas não se mexiam e logo se tornou claro que seus corpos estavam inclinados em ângulo reto com a estranha prancha, que parecia ter uma gravidade própria, capaz de neutralizar a da Terra. As crianças estavam ainda gozando aquela estra- nha experiência e imaginando o que as estaria atraindo para cima, quando desapareceram no interior da nave.
Um grande silêncio caiu sobre o mundo inteiro durante vinte segundos — embora, mais tarde, ninguém pudesse acreditar que tão pouco tempo se tivesse passado. Então, a escuridão da grande abertura deu a impressão de avançar, e Karellen surgiu à luz do sol. O menino estava sentado em seu braço esquerdo, a menina, no direito — ambos demasiado ocupados brincando com as asas de Karellen, para repararem na multidão que os olhava.
Foi um tributo à psicologia dos Senhores Supremos e a todos aqueles anos de cuidadosa preparação o fato de apenas algumas pessoas terem desmaiado. E, ainda, em todo o mundo, foram poucas as pessoas que sentiram o antigo terror perpassar-lhes, por um horrível instante, a mente, antes que a razão o banisse para sempre.
Não era uma ilusão. As asas encouradas, os pequenos chifres, a cauda eriçada — nada faltava. A mais terrível de todas as lendas criara vida, emergira do passado desconhecido. E contudo, lá estava, sorrindo, numa majestade de ébano, com a luz do sol fazendo brilhar o seu tremendo corpo e uma criança humana confiantemente pousada em cada braço.
Cinqüenta anos é tempo de sobra para modificar um mundo e sua gente a ponto de quase não serem reconhecidos. Tudo de que se precisa é um conhecimento profundo da estrutura social, uma visão clara do objetivo em mente… e poder.
Todas essas coisas os Senhores Supremos possuíam. Embora seu objetivo não fosse claro, seu conhecimento era evidente — bem como seu poder.
Esse poder revestia-se de várias formas, poucas das quais eram sequer compreendidas pelos povos cujos destinos os Senhores Supremos agora governavam. O poderio representado pelas suas grandes naves tinha sido suficientemente evidente para todo mundo poder ver. Mas, por trás daquela exibição de força latente, havia outras armas, muito mais sutis.
— Todos os problemas políticos — dissera, certa vez, Karellen a Stormgren — podem ser resolvidos pela correta aplicação do poder.
— Isso parece um comentário bastante cínico — retrucara Stormgren, em tom de dúvida. — É por demais parecido com «Força é justiça». No nosso passado, o uso do poder poucas vezes conseguiu resolver fosse o que fosse.
— A palavra-chave é «correto». Vocês nunca possuíram poder real ou o conhecimento necessário para aplicá-lo. Em todos os problemas, há maneiras eficientes e ineficientes de abordá-los. Suponhamos, por exemplo, que uma de suas nações, liderada por um fanático, tentasse rebelar-se contra mim. A resposta ineficiente a uma tal ameaça seriam bilhões de HP sob a forma de bombas atômicas. Se eu usasse bombas bastantes, a solução seria completa e definitiva. Mas seria também, como observei, ineficiente — mesmo que não tivesse nenhum outro efeito.
— E qual seria a solução eficiente?
— Uma que exigisse o poder de um pequeno transmissor de rádio, e nenhuma habilidade especial para operá-lo. Porque o que interessa é a aplicação do poder, e não sua quantidade. Quanto tempo você acha que a carreira de Hitler como ditador da Alemanha teria durado, se, aonde quer que ele fosse, uma voz estivesse sempre lhe falando baixinho ao ouvido? Ou se uma única nota musical, suficientemente alta para abafar todos os demais sons e não permitir o sono, lhe enchesse o cérebro noite e dia? Nada brutal, como vê. Mas, em última análise, tão destruidor como uma bomba de nêutrons.
— Entendo — disse Stormgren. — E não haveria lugar onde se esconder?
— Nenhum lugar onde eu não pudesse chegar com meus recursos, se achasse isso necessário. E é por essa razão que nunca terei de usar métodos realmente drásticos para manter minha posição.
As grandes naves não tinham, então, sido mais do que símbolos e agora o mundo sabia que todas, menos uma, não haviam passado de naves-fantasmas. Contudo, com sua presença apenas, tinham mudado a história da Terra. Agora, sua tarefa estava terminada e o que se haviam proposto repercutiria por séculos e séculos.
Os cálculos de Karellen tinham sido acurados. O cho-
que da repulsa passara depressa, embora muitos se orgulhassem de não terem superstições — nunca, porém, foram capazes de enfrentar um só dos Senhores Supremos. Havia algo de estranho nisso, algo para além da razão e da lógica. Na Idade Média, as pessoas acreditavam no demônio e o temiam. Mas estávamos no século XXI: seria possível que, afinal de contas, existisse uma memória racial?
Presumia-se, naturalmente, que os Senhores Supremos, ou seres da mesma espécie, tinham entrado em violento conflito com o homem primitivo. O encontro devia ter ocorrido num passado remoto, pois não deixara vestígios na história. Era outro enigma, para cuja solução Karellen não ajudava em nada.
Embora já se tivessem revelado aos homens, os Senhores Supremos raramente saíam da nave remanescente. Talvez achassem a Terra fisicamente desconfortável para seu tamanho, e a existência de asas indicava que vinham de um mundo de gravidade bem mais baixa. Nunca eram vistos sem um cinturão cheio de mecanismos complicados que, conforme se acreditava, controlavam-lhes o peso e permitiam-lhes comunicar-se uns com os outros. A luz do sol resultava-lhes dolorosa e nunca ficavam mais de uns poucos segundos expostos a ela. Quando tinham que ficar ao ar livre durante um espaço maior de tempo, usavam óculos escuros, que lhes davam uma aparência algo incongruente. Embora parecessem capazes de respirar o ar terrestre, carregavam às vezes pequenos cilindros de gás, que utilizavam ocasionalmente.
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