A humanidade perdera seus velhos deuses. Era agora suficientemente velha para precisar de deuses novos.
Embora poucos se dessem conta disso, a queda das religiões fora acompanhada por um declínio da ciência. Havia muitos técnicos, mas poucos se aventuravam para além das fronteiras do conhecimento humano. A curiosidade persistia e havia tempo para explorá-la, mas faltava o estímulo para as pesquisas científicas fundamentais. Parecia fútil passar toda uma vida pesquisando segredos que sem dúvida os Senhores Supremos já tinham desvendado eras antes.
Esse declínio fora parcialmente disfarçado por uma enorme florescência das ciências descritivas, como a zoologia, a botânica e a astronomia de observatório. Nunca houvera tantos cientistas amadores coligindo fatos para seu próprio gáudio; mas havia poucos teóricos correlacionando esses fatos.
O fim das lutas e dos conflitos de todas as espécies fora também o fim virtual da arte criadora. Havia miríades de executantes, amadores e profissionais, mas nenhuma obra significativa nos campos da literatura, da música, da pintura ou da escultura viera à luz durante toda uma geração. O mundo continuava vivendo das glórias de um passado que jamais voltaria.
Ninguém se preocupava com isso, exceto alguns filósofos. A raça humana estava por demais interessada em saborear a recém-descoberta liberdade, para ver além dos prazeres do presente. A utopia chegara finalmente; a sua novidade não fora ainda ameaçada pelo inimigo supremo de todas as utopias — o tédio.
Talvez os Senhores Supremos tivessem a resposta para isso, como para todos os demais problemas. Ninguém sabia — como tampouco não se sabia, uma geração após eles terem chegado, qual seu objetivo final. A humanidade acostumara-se a confiar neles e a aceitar, sem questionar, o altruísmo sobre-humano que durante tanto tempo mantivera Karellen e seus companheiros longe de seu mundo.
Quando Rupert Boyce mandou os convites para sua festa, expediu-os para os quatro cantos do mundo. Tomando, por exemplo, apenas os primeiros doze convidados, havia os Foster, em Adelaide, os Shoenberger, no Haiti, os Farran, em Stalingrado, os Moravia, em Cincinnati, os Invanko, em Paris, e os Sullivan, nas vizinhanças da ilha da Páscoa, mas uns quatro quilômetros abaixo, no leito oceânico. Rupert sentiu-se lisonjeado pelo fato de que, embora tivesse convidado apenas trinta pessoas, mais de quarenta apareceram. Só os Krause deram o bolo e isso porque se esqueceram de regular os relógios pela hora internacional e chegaram vinte e quatro horas depois.
Por volta do meio-dia, uma impressionante coleção de carros aéreos se acumulara no parque e os que chegassem mais tarde teriam que andar um bocado, depois de haverem encontrado um lugar onde pousar. Pelo menos, a distância lhes pareceria grande, sob aquele céu sem nuvens e a uma temperatura de mais de quarenta e dois graus centígrados. Os veículos ali reunidos iam desde os Flitterbugs para uma só pessoa até os Cadillacs familiares, que mais pareciam palácios aéreos do que pura e simplesmente máquinas voadoras. Nessa era, porém, nada se podia deduzir do status social dos convidados através de seus meios de transporte.
— Que casa feia! — comentou Jean Morrei, à medida que seu Meteor descia em espiral. — Parece uma caixa que alguém tivesse pisado.
George Greggson, que tinha uma ojeriza fora de moda pelos pousos automáticos, reajustou o controle de descida antes de responder:
— Não é justo julgar a casa deste ângulo. Vista do chão, deve ser muito diferente. Oh, céus!
— Que foi que houve?
— Os Foster estão aqui. Seria capaz de reconhecer aquela combinação de cores em qualquer lugar do mundo.
— Ora, você não precisa falar com eles, se não quiser. Essa é uma das vantagens das festas de Rupert, a gente sempre pode se esconder na multidão.
George escolhera um lugar onde aterrissar e estava se dirigindo para ele. Pousaram entre um outro Meteor e algo que nenhum dos dois foi capaz de identificar. Parecia muito rápido e, pensou Jean, muito desconfortável. Sem dúvida, concluiu ela, fora construído por um dos técnicos amigos de Rupert. Tinha idéia da existência de uma lei contra aquele tipo de coisa.
O calor atingiu-os como uma onda, mal puseram o pé fora do aparelho. Parecia sugar-lhes toda a umidade do corpo e George imaginou, inclusive, que sentia a pele estalando. Em parte era culpa deles, claro. Tinham saído do Alasca havia três horas e deviam ter se lembrado de ajustar a temperatura da cabina.
— Que lugar para se viver! — arquejou Jean. — Pensei que esse clima fosse controlado.
— E é — retrucou George. — Outrora, tudo isso era deserto, e olhe só agora. Venha, lá dentro deve estar melhor!
A voz de Rupert, uma voz de trovão, ressoou alegremente aos ouvidos deles. O anfitrião estava de pé, ao lado do avião, um copo em cada mão, olhando para eles com expressão divertida. Tinha que olhar do alto porque media aproximadamente quatro metros de altura. Além disso, era semitransparente. Podia-se ver através dele sem muita dificuldade.
— Isso é brincadeira que se faça com seus convidados! — protestou George. Tentou pegar os drinques, pondo-se nas pontas dos pés, mas suas mãos passaram através dos copos, claro. — Espero que você tenha algo de mais substancial para nos dar em casa!
— Não se preocupe! — riu Rupert. — É só dizerem o que vão querer, que tudo estará pronto quando vocês chegarem.
— Duas cervejas bem geladas! — respondeu logo George. — E não vamos demorar.
Rupert fez que sim com a cabeça, pousou um dos copos numa mesa invisível, ajustou um controle igualmente invisível e logo desapareceu de vista.
— Puxa! — exclamou Jean. — É a primeira vez que vejo um desses aparelhinhos em ação. Como foi que Rupert o conseguiu? Pensei que só os Senhores Supremos os tivessem.
— Você já soube de algo que Rupert quisesse e não conseguisse? — replicou George. — É mesmo um brinquedo para ele. Pode estar confortavelmente sentado em seu estúdio e dar a volta à África. Sem calor, sem insetos, sem se cansar, e com a geladeira sempre à mão. Que teriam achado disso Stanley e Livingstone?
O sol pôs ponto final à conversa até chegarem a casa.
Mal se aproximaram da porta de entrada (que não era fácil de distinguir do resto da parede de vidro), ela se abriu automaticamente, com uma fanfarra de trompetes. Jean desconfiou, corretamente, que não agüentaria mais ouvir aquela fanfarra antes que o dia tivesse terminado.
A atual Sra. Boyce recebeu-os no delicioso frescor do hall. Na verdade, ela era a principal razão da afluência dos convidados. Talvez a metade tivesse ido, de qualquer maneira, para ver a nova casa de Rupert, mas os indecisos haviam se decidido pelo que tinham ouvido dizer sobre a nova esposa de Rupert.
Só havia um adjetivo adequado para descrevê-la: estonteante. Mesmo num mundo onde a beleza era quase lugar-comum, os homens viravam a cabeça quando ela entrava numa sala. George calculou que tivesse um quarto de sangue negro; tinha feições gregas e o cabelo comprido e lus-troso. Apenas o escuro tom da sua pele — o muito usado termo «chocolate» era o único apropriado para ele — revelava sua ascendência mestiça.
— Vocês são Jean e George, não? — disse ela, estendendo a mão. — É um prazer conhecê-los. Rupert está preparando uns drinques complicados. Venham, vou apresentá-los aos outros.
Tinha uma linda voz de contralto, que causou arrepios em George, como se alguém estivesse acariciando sua espinha. Olhou nervosamente para Jean, que exibia um sorriso algo artificial, e finalmente recobrou a voz.
— M-muito prazer em conhecê-la — disse, gaguejando. — Acho que vai ser uma linda festa.
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