Quando aquele arranco súbito e vertiginoso ocorreu pela terceira vez, seu coração quase parou de bater. O estranho embaçamento da visão era inequívoco, por um momento, tudo quanto o cercava tornou-se distorcido a ponto de ficar irreconhecível. O significado dessa distorção lhe ocorreu num átimo de inspiração que ele não poderia explicar. Era real, e não uma ilusão de sua vista. De alguma forma estava recebendo, ao passar através da delgada película do Presente, um vislumbre das coisas que estavam ocorrendo no espaço a seu redor.
No mesmo instante, o murmúrio dos geradores elevou-se a um estrondo que sacudiu a nave — som duplamente imponente, pois era o primeiro grito de protesto que Alvin escutava de uma máquina. Depois tudo acabou e o súbito silêncio como que retiniu em seus ouvidos. Os grandes geradores haviam cumprido sua tarefa. Não seriam mais necessários até o fim da viagem. As estrelas adiante brilharam, branco-azuladas, e desapareceram na faixa do ultravioleta. No entanto, por algum ato mágico da ciência ou da natureza, os Sete Sóis ainda eram visíveis, embora suas cores e posições se houvessem alterado sutilmente. A nave arrojava-se na direção deles por um túnel de escuridão, além das fronteiras de espaço e tempo, a uma velocidade enorme demais para a mente conceber.
Era difícil imaginar que já haviam sido atirados para fora do sistema solar a uma velocidade que, a menos que reduzida em breve, logo os faria atravessar o núcleo da Galáxia e enveredar pelo grande vazio além dela. Nem Alvin nem Hilvar poderiam conceber a imensidão real da jornada, as grandes sagas de exploração haviam completamente alterado a perspectiva do Homem em relação ao Universo, e, ainda agora, milhões de séculos mais tarde, as antigas tradições não tinham ainda morrido inteiramente. Houve no passado uma nave. sussurrava a lenda, que circunavegara o Cosmos no lapso entre o nascer e o pôr-do-sol. Os bilhões de quilômetros entre as estrelas nada significavam diante de tais velocidades. Para Alvin essa viagem era pouquíssimo maior, e talvez menos perigosa, do que sua primeira jornada a Lys.
Foi Hilvar quem expressou seus pensamentos quando os Sete Sóis começaram a brilhar mais forte diante deles.
— Alvin — comentou ele —, essa formação não pode ser natural.
O outro assentiu.
— Tenho pensado isso há anos, mas ainda me parece fantástico.
— O sistema pode não ter sido construído pelo Homem — concordou Hilvar-, mas é forçoso que tenha sido criado pela inteligência. A natureza jamais poderia ter formado aquele círculo perfeito de estrelas, todas com o mesmo brilho. E não há nada no universo visível semelhante ao Sol Central.
— Mas por que se teria construído uma coisa dessas?
— Ah, posso imaginar várias razões. Talvez seja um sinal, de modo que qualquer nave que entrasse em nosso universo soubesse onde procurar vida. Talvez marque o centro da administração galáctica. Ou talvez… e por algum motivo creio que é essa a explicação verdadeira… trata-se simplesmente da maior de todas as obras de arte. Mas é tolice especular agora. Em poucas horas saberemos toda a verdade.
«Saberemos toda a verdade.» Talvez, pensou Alvin… mas quanto dessa verdade jamais saberemos? Parecia estranho que naquele momento, enquanto deixava Diaspar e, na verdade, a própria Terra, a uma velocidade além de qualquer compreensão, sua mente voltasse mais uma vez para o mistério de sua origem. No entanto, talvez isso não fosse tão surpreendente, ele aprendera muitas coisas desde que chegara pela primeira vez a Lys, mas até o momento não tivera uma pausa para refletir tranqüilamente.
Nada havia que ele pudesse fazer agora senão esperar, seu futuro imediato estava controlado por uma máquina maravilhosa — certamente uma das supremas realizações técnicas de todos os tempos — que o transportava para o coração daquele universo. Era um momento para reflexão e meditação, quisesse ele ou não. Mas primeiro contaria a Hilvar tudo quanto lhe acontecera desde que se tinham despedido apressadamente, apenas dois dias antes.
Hilvar ouviu a história sem comentários. Sem pedir uma explicação, parecia entender imediatamente tudo quanto Alvin descrevia, não demonstrando surpresa nem mesmo quando o amigo lhe falou do encontro com o Computador Central e da operação que este realizara na mente do robô. Não que ele fosse incapaz de admiração, mas a história do passado estava cheia de maravilhas que poderiam igualar-se a qualquer coisa na história contada por Alvin.
— É óbvio — ele disse, terminada a narrativa — que o Computador Central deve ter recebido instruções especiais com relação a você, quando foi construído. A essa altura, você deve ter entendido por quê.
— Creio que sim. Khedron deu-me parte da resposta quando explicou a maneira pela qual os construtores de Diaspar haviam tomado providências para evitar que a cidade se tornasse decadente.
— Acha que você e os outros Únicos antes de você fazem parte do mecanismo social que impede a completa estagnação? De modo que, enquanto os Bufões são fatores corretivos a curto prazo, você e os de sua espécie são, por assim dizer, fatores corretivos a longo prazo?
Hilvar expressara a idéia melhor do que Alvin poderia fazê-lo, mas ainda assim Alvin não concebia perfeitamente o que Hilvar tinha em mente.
— Creio que a verdade seja mais complicada do que isso. Parece até que houve um conflito de opiniões quando a cidade foi construída, uma divergência entre aqueles que desejavam fechá-la completamente ao mundo externo e aqueles que defendiam a manutenção de certos contactos. A primeira facção venceu, mas os outros não admitiram a derrota. Creio que Yarlan Zey deve ter sido um de seus líderes, mas não dispunha de força para agir abertamente. Fez o melhor que pôde, deixando o subterrâneo em funcionamento e garantindo que a longos intervalos saísse da Casa da Criação alguém que não compartilhasse dos medos de todos os seus compatriotas. Na verdade, fico pensando… — Alvin fez uma pausa, e seus olhos se toldaram, pensativos, de modo que por um instante ele pareceu esquecido de onde estava.
— Em que está pensando agora? — perguntou Hilvar.
— Acabo de imaginar… talvez eu seja Yarlan Zey. É perfeitamente possível. Ele pode ter programado sua personalidade nos Bancos de Memória, confiando em que ela quebrasse os padrões de Diaspar antes de estarem fixados de uma vez por todas. Algum dia terei de descobrir o que aconteceu aos outros Únicos. Isso poderá ajudar a completar as lacunas do quadro.
— E Yarlan Zey… ou quem quer que tenha sido… também instruiu o Computador Central para dar assistência especial aos Únicos, sempre que fossem criados — conjecturou Hilvar, seguindo a mesma linha de raciocínio.
— Exatamente. A ironia é que eu poderia ter recebido toda informação que queria do Computador Central, sem qualquer ajuda do pobre Khedron. O Computador me teria dito muito mais do que jamais disse a ele. Mas não resta dúvida de que Khedron poupou-me muito tempo, ensinando-me muitas coisas que eu nunca poderia ter aprendido sozinho.
— Creio que sua teoria cobre todos os fatos conhecidos — disse Hilvar cautelosamente. — Infelizmente, ainda deixa em aberto o maior problema de todos… a finalidade original de Diaspar. Por que sua gente tentou fingir que o mundo fora da cidade não existia? Essa é uma pergunta que eu gostaria de ver respondida.
— É uma pergunta que pretendo responder — disse Alvin. — Mas não sei quando… nem como.
Assim continuaram a discutir e a sonhar, enquanto hora a hora os Sete Sóis se separavam até encherem aquele estranho túnel de noite pelo qual a nave estava a viajar. Então, uma a uma as seis estrelas exteriores desapareceram na orla da escuridão e por fim só restou o Sol Central. Ainda fulgia com a luz perolada que o distinguia de todas as outras. A cada minuto, seu brilho aumentava, até que deixou de ser um ponto, transformando-se num disco, a princípio minúsculo, que logo começou a crescer diante deles…
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