A luz que fluía da pêra de metal sobre suas cabeças transformou-se num brilho baço, mas o calor que ela irradiava continuou igual. O último bruxuleio de luz registrou na mente de Alvin um fato curioso sobre o qual teria de fazer perguntas na manhã seguinte.
Hilvar havia-se despedido e, pela primeira vez, Alvin viu até que ponto os dois ramos da raça humana haviam divergido. Algumas das mudanças eram meramente de ênfase e proporção, as outras, como a genitália externa e a presença de dentes, unhas e pêlos, eram mais básicas. Contudo, o que mais o espantou foi o curioso buraquinho na boca do estômago de Hilvar.
Alguns dias mais tarde, ao lembrar-se subitamente do assunto, ouviu muitas explicações. Depois que Hilvar deixou bem claras as funções do umbigo, já havia pronunciado milhares de palavras e desenhado meia dúzia de diagramas.
E tanto ele como Alvin tinham dado um largo passo no sentido de compreender a base de suas respectivas culturas.
A noite já ia alta quando Alvin despertou. Alguma coisa o havia perturbado, algum sussurro que se infiltrara até o fundo de sua mente, apesar do trovão incessante das cachoeiras. Sentou-se, em meio à escuridão, fazendo força para enxergar a terra oculta, enquanto, sustendo a respiração, escutava o ruído das águas e os sons mais suaves, mais fugidios, das criaturas da noite.
Nada se via. A luz das estrelas era fraca demais para revelar os quilômetros de terras que se estendiam a dezenas de metros lá embaixo, apenas uma linha acidentada de noite mais escura, eclipsando as estrelas, revelava a presença das montanhas no horizonte meridional. Nas trevas, ao lado dele, Alvin percebeu que o companheiro rolava no leito e se sentava.
— O que foi? — ele ouviu uma voz sussurrante.
— Acho que ouvi um barulho.
— Que tipo de barulho?
— Não sei. Talvez seja apenas imaginação.
Houve silêncio, enquanto dois pares de olhos perscrutavam o mistério da noite. Então, de repente, Hilvar pegou Alvin pelo braço.
— Veja! — murmurou.
A distância, em direção ao sul, brilhava um ponto solitário de luz, baixo demais no céu para ser uma estrela. Era de um branco brilhante, manchado de violeta e, enquanto olhavam, a luz começou a escalar o espectro de intensidade, até que a vista não suportou mais contemplá-la. Então, explodiu — e foi como se o relâmpago houvesse atingido a Terra. Por um breve momento, as montanhas e a terra que elas encerravam ficaram gravadas a fogo contra o negrume da noite. Muito tempo depois ouviu-se o fantasma de uma explosão longínqua, e nas matas lá embaixo um vento súbito agitou as árvores, morrendo rapidamente, e uma a uma as estrelas dispersadas voltaram ao céu.
Pela segunda vez em sua vida, Alvin conheceu o medo. Não era uma sensação tão pessoal e iminente como a que o assaltara na câmara dos Caminhos Móveis, quando tomou a decisão que o levara a Lys. Talvez fosse mais um temor respeitoso, ele estava contemplando a face do desconhecido, e era como se já houvesse pressentido que para além das montanhas residisse alguma coisa que ele tinha de ver de perto.
— O que foi isso? — cochichou por fim.
— Estou tentando descobrir — disse Hilvar. calando-se outra vez. Alvin adivinhou o que ele estava fazendo, e não interrompeu mais a investigação silenciosa do amigo.
Daí a pouco Hilvar soltou um pequeno suspiro de desapontamento.
— Todos estão dormindo — disse. — Não há ninguém que pudesse informar. Teremos de esperar até de manhã, a menos que eu acorde um de meus amigos. E eu não gostaria de fazer isso a menos que se tratasse de alguma coisa realmente importante.
Alvin pensou com seus botões o que é que Hilvar consideraria um assunto de real importância. Estava para sugerir, com uma ponta de sarcasmo, que aquilo justificava interromper o sono de alguém. Mas antes que pudesse formular o comentário, Hilvar voltou a falar.
— Acabei de me lembrar — ele disse, num tom de desculpas. — Já faz muito tempo que não venho aqui, e não tenho plena certeza de minha posição. Mas ali deve ser Shalmirane.
— Shalmirane! Ainda existe?
— Existe. E eu tinha quase esquecido. Seranis já me contou que a fortaleza fica nessas montanhas. Está em ruínas há muito tempo, é claro, mas talvez ainda more alguém lá.
Shalmirane! Para aqueles filhos de duas raças, de cultura e história tão diferentes, aquele era realmente um nome mágico. Em toda a longa história da Terra, jamais houvera epopéia maior do que a defesa da Terra contra um invasor que havia conquistado todo o Universo. Ainda que os fatos reais estivessem irremediavelmente perdidos nas névoas que se haviam reunido tão densamente em torno das Eras do Alvorecer, as lendas nunca tinham sido esquecidas e perdurariam enquanto existisse o Homem.
A voz de Hilvar soou novamente na escuridão.
— A gente do sul poderia contar mais coisas. Tenho alguns amigos lá. Vou chamá-los pela manhã.
Alvin mal o escutava, estava imerso em seus próprios pensamentos, tentando recordar tudo quanto ouvira falar de Shalmirane. Era pouca coisa, na verdade. Depois de todo aquele imenso lapso de tempo, ninguém podia separar a verdade da lenda. Tudo que se sabia ao certo era que a batalha de Shalmirane assinalou o fim das conquistas do Homem e o começo de seu longo declínio.
Entre aquelas montanhas, pensou Alvin, poderia estar a resposta para todos os problemas que o atormetaram por tantos anos.
— Quanto tempo levaríamos para chegar à fortaleza? — perguntou a Hilvar.
— Nunca estive lá, mas é muito mais longe do que eu pretendia ir. Duvido que possamos fazer a viagem em um dia.
— Não podemos usar o carro terrestre?
— Não. O caminho segue pelas montanhas e nenhum carro pode viajar por ali.
Alvin meditou. Estava cansado, tinha os pés doloridos e os músculos de suas coxas ainda doíam do esforço a que não estava habituado. Era muito tentador deixar aquilo para outra ocasião. No entanto, talvez não houvesse outra ocasião…
Sob a luz baça das estrelas, das quais não poucas haviam morrido desde a construção de Shalmirane, Alvin, após lutar com seus pensamentos, tomou sua decisão. Nada se havia modificado, as montanhas retomaram sua vigília sobre a terra adormecida. Mas um ponto crítico na história da Terra chegara e desaparecera, e a raça humana encaminhava-se para um futuro novo e estranho.
Alvin e Hilvar não dormiram mais, levantando acampamento logo ao romper da aurora. A colina estava encharcada de orvalho, levando Alvin a maravilhar-se com a ourivesaria refulgente que fazia pender cada lâmina de relva e cada folha. O farfalhar da erva molhada fascinava-o, e olhando de volta para o alto do monte, via suas pegadas estendendo-se atrás de si como uma fita negra sobre o chão reluzente.
O Sol tinha acabado de se erguer sobre a muralha oriental de Lys quando chegaram às cercanias da floresta. Ali, a natureza imperava livremente. Mesmo Hilvar parecia um tanto perdido entre as árvores gigantescas que bloqueavam a luz do Sol e lançavam sombras densas no leito da floresta. Felizmente, depois das cachoeiras, o rio corria numa linha reta demais para ser inteiramente natural, e acompanhando-o pela beirada conseguiam evitar a vegetação mais densa. Grande parte do tempo de Hilvar era dedicado a controlar Krif, que desaparecia de vez em quando na selva ou saía saltando loucamente sobre a água. Alvin, para quem tudo era tão novo, percebia que a floresta encerrava um fascínio ausente dos bosques menores e mais delicados na área setentrional de Lys. Poucas árvores eram iguais, a maioria se encontrava em vários estágios de involução e algumas haviam retornado, através das eras, quase às suas formas naturais originais. Muitas não eram obviamente da Terra — provavelmente não pertenceriam sequer ao sistema solar. Como sentinelas, pairando sobre as árvores menores, agigantavam-se sequóias descomunais, de noventa ou cento e vinte metros de altura. No passado haviam sido considerados os seres vivos mais antigos do planeta, e ainda eram um pouco mais velhas do que o Homem.
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