Subjugados por sua majestade, Alvin e Hilvar caminharam em silêncio em direção às ruínas colossais. Entraram na sombra de uma muralha destruída e seguiram por um desfiladeiro onde as montanhas de pedra se haviam rendido. Diante deles estendia-se o lago, e daí a pouco estavam bem junto dele, as águas batendo-lhes nos pés. Ondas minúsculas, com menos de um palmo de altura, quebravam incessantemente sobre a praia estreita.
Hilvar foi o primeiro a falar, sua voz tinha um quê de insegurança que levou Alvin a olhá-lo com súbita surpresa.
— Há alguma coisa aqui que não compreendo — disse lentamente. — Se não há vento, o que causa essas marolas? A água deveria estar perfeitamente imóvel…
Antes que Alvin pudesse pensar em alguma resposta, Hilvar abaixou-se, virou a cabeça de lado e mergulhou o ouvido direito na água. Alvin perguntou a si mesmo o que pretenderia ele descobrir em posição tão estranha, depois percebeu que estava escutando alguma coisa. Com certa repugnância — pois as águas escuras pareciam singularmente repelentes — seguiu o exemplo de Hilvar.
O primeiro choque do frio durou apenas um segundo, quando passou, ele pôde ouvir, leve, mas clara, uma pulsação firme e bem ritmada. Era como se pudesse escutar, das profundezas do lago, as batidas de um coração gigante.
Sacudiram a água de seus cabelos, olhando um para o outro com um único e silencioso pensamento. Nenhum deles se, atrevia a dizer o que estava pensando — que o lago era vivo.
— Seria melhor — disse Hilvar daí a momentos — investigarmos essas ruínas e nos mantermos longe do lago.
— Você acha que existe alguma coisa lá embaixo? — perguntou Alvin, apontando para as inexplicáveis marolas que continuavam a quebrar contra seus pés. — Poderia ser perigoso?
— Nada que possua mente é perigoso — respondeu Hilvar. (Isso seria verdade? pensou Alvin. O que dizer dos Invasores?) — Não consigo detectar pensamentos de espécie alguma aqui, mas não acredito que estejamos sozinhos. É muito estranho.
Voltaram lentamente para as ruínas da fortaleza, cada qual levando no espírito o som daquela pulsação firme e abafada. Parecia a Alvin que os mistérios se acumulavam e que, apesar de todos os seus esforços, ele se estava afastando cada vez mais da compreensão das verdades que buscava.
Não era crível que as ruínas pudessem informar-lhes qualquer coisa, mas exploraram cuidadosamente as pilhas de entulho e os montes de pedras. Ali, talvez, estivessem os túmulos de máquinas sepultas — a maquinaria que havia realizado sua tarefa há tanto tempo. Seriam inúteis agora, pensou Alvin, se os Invasores retornassem. Por que nunca teriam voltado? Mas isso era ainda outro mistério. Ele já tinha enigmas suficientes para desvendar, e não havia por que procurar novos.
A alguns metros do lago encontraram uma pequena clareira entre o refugo. Tinha sido recoberta por ervas, mas as plantas estavam agora enegrecidas e chamuscadas por um calor tremendo, desfazendo-se em cinzas quando se aproximaram, sujando-lhes as pernas com carvão. No centro da clareira havia um tripé de metal, firmemente preso ao chão e suportando um aro inclinado em seu eixo de maneira a apontar para um ponto no céu. A primeira vista, parecia que o arco nada continha, mas, quando Alvin o examinou mais detidamente, viu que estava cheio de uma névoa diáfana que atormentava a vista, por se localizar fugidiamente no limite do espectro visível. Era o brilho da força, e daquele mecanismo, não duvidava, viera a explosão de luz que os havia atraído a Shalmirane.
Não se aventuraram a aproximar-se mais, observando a máquina de uma distância segura. Estavam no caminho certo, pensou Alvin. Só restava descobrir quem — ou o que — havia montado aquele aparelho ali, e com que finalidade. Aquele aro inclinado estava obviamente apontado para o Espaço. Seria o clarão que tinham visto alguma espécie de sinal? Essa idéia acarretava implicações assustadoras.
— Alvin — disse Hilvar de repente, com a voz serena, mas transmitindo preocupação —, temos visitantes.
Alvin girou nos calcanhares e deu consigo fitando um triângulo de olhos sem pálpebras. Essa, pelo menos, foi sua primeira impressão. Então, por trás dos olhos fixos, percebeu os contornos de uma máquina complexa, posto que pequena. Estava suspensa no ar, a pouca distância do chão, e não se assemelhava a nenhum robô que ele já tivesse visto.
Assim que passou a surpresa inicial, sentiu-se inteiramente senhor da situação. Durante toda a sua vida dera ordens a máquinas, e o fato de não conhecer aquela não tinha importância. Aliás, jamais vira senão uma pequena parte dos robôs que atendiam às suas necessidades diárias em Diaspar.
— Poder falar? — perguntou. Houve silêncio.
— Há alguém controlando você?
Ainda silêncio.
— Vá embora. Venha cá. Levante-se. Caia.
Nenhum dos pensamentos convencionais de controle produziu qualquer efeito. A máquina permaneceu desdenhosamente inativa. Isso sugeria duas possibilidades. Ou a máquina era obtusa demais para entendê-lo, ou, na verdade, era inteligente demais com seus próprios poderes de opção e volição. Nesse caso, deveria tratá-la como a um igual. Mesmo assim, poderia vir a subestimá-la — mas ela não teria nenhum ressentimento com relação a ele, pois a presunção não era vício de que as máquinas sofressem.
Hilvar não pôde deixar de rir da óbvia perplexidade de Alvin. Estava para sugerir que ele assumisse a tarefa de comunicação, quando as palavras morreram em seus lábios. O sossego de Shalmirane foi despedaçado por um som pressago e totalmente inconfundível — o espadanar de água, provocado por um corpo de grandes dimensões que emergia do lago.
Pela segunda vez desde que saíra de Diaspar, Alvin desejou estar em casa. Depois lembrou-se que não era com esse espírito que devia afrontar as aventuras, e começou a caminhar lenta, mas deliberadamente em direção ao lago.
A criatura que emergia das águas escuras parecia uma paródia monstruosa, em matéria viva, do robô que ainda os submetia a seu silencioso escrutínio. Aquela mesma disposição eqüilateral dos olhos não podia ser coincidência, até mesmo a disposição dos tentáculos e dos pequenos membros articulados tinha sido reproduzida aproximadamente. Além disso, contudo, a semelhança cessava. O robô não possuía — evidentemente não tinha necessidade daquilo — a franja de palpos delicados e frágeis que batiam na água com um ritmo constante, as pernas múltiplas e curtas sobre os quais o animal se punha agora de pé na margem, ou as aberturas de ventilação, se eram isso, que agora se abriam e fechavam espasmodicamente no ar rarefeito.
A maior parte do corpo da criatura permanecia na água, apenas os três metros superiores emergiam para um elemento que evidentemente lhe era estranho. O animal teria seus quinze metros de comprimento, e mesmo uma pessoa desprovida de qualquer conhecimento de biologia teria compreendido que havia algo inteiramente errado nele. Aparentava um extraordinário ar de improvisação e desenho descuidado, como se suas partes tivessem sido fabricadas sem muito planejamento e reunidas de qualquer maneira quando surgiu a necessidade de fazê-lo.
Apesar de seu tamanho e de suas dúvidas iniciais, nem Alvin nem Hilvar sentiram o menor nervosismo assim que olharam mais claramente o habitante do lago. Havia naquela criatura um desajeitamento simpático que tornava de todo impossível considerá-la uma ameaça séria, mesmo que houvesse qualquer razão para se tê-la na conta de perigosa. A raça humana havia há muito tempo superado seu terror infantil de tudo o que apresentasse aspecto estranho. Tratava-se de um medo que não poderia sobreviver após o primeiro contato com raças extraterrestres amistosas.
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