— Por que seu robô não fala conosco? — ele perguntou ao pólipo, num momento em que Hilvar fez uma pausa momentânea. A criatura de certa forma esperava essa pergunta.
— Contrariava os desejos do Mestre que o robô falasse com outra voz senão a dele, e sua voz agora se calou.
— Mas ele lhe obedece?
— Sim, o Mestre o pôs sob nossa responsabilidade. Podemos ver através de seus olhos, onde quer que ele vá. Ele vigia as máquinas que preservam este lago e mantêm as águas puras. Contudo, seria mais correto chamá-lo de nosso companheiro que de nosso servo.
Alvin pensou a respeito do que ouvira. Uma idéia, ainda vaga e inarticulada, começava a formar-se em sua mente. Talvez fosse inspirada por puro desejo de conhecimento e poder, mais tarde, quando se lembrava daquele momento, nunca sabia dizer com certeza quais tinham sido suas motivações. Poderiam ser em grande parte egoístas, mas continham também um elemento de compaixão. Se estivesse a seu alcance, ele romperia aquela seqüência inútil, libertando essas criaturas de seu conto fantástico. Não sabia ao certo o que poderia ser feito com relação ao pólipo, mas talvez fosse possível curar o robô de sua insânia, e ao mesmo tempo liberar suas inestimáveis memórias acumuladas.
— Tem certeza — ele disse lentamente, falando com o pólipo, mas visando ao robô — que está realmente cumprindo os desejos do Mestre permanecendo aqui? Ele desejava que o mundo conhecesse seus ensinamentos, mas essas doutrinas têm permanecido ocultas aqui em Shalmirane. Só por casualidade os descobrimos, e talvez haja outros que gostariam de ouvir a doutrina dos Grandes.
Hilvar olhou-o de esguelha, obviamente incerto de suas intenções. O pólipo mostrou-se agitado, e os batimentos contínuos de seu aparelho respiratório cessaram por alguns instantes. Depois respondeu, numa voz um tanto fora de controle:
— Já discutimos esse problema durante muitos anos. Mas não podemos sair de Shalmirane, de modo que o mundo deve vir a nós, por mais tempo que isso demore.
— Tenho uma idéia melhor — disse Alvin animadamente. — É verdade que você talvez tenha de ficar aqui no lago, mas não há nenhum motivo para que seu companheiro não venha conosco. Ele poderá voltar a qualquer momento que desejar, ou quando você necessitar dele. Muitas coisas se modificaram desde que o Mestre morreu, coisas que vocês devem conhecer, mas que nunca poderão compreender se ficarem aqui.
O robô em nenhum momento se moveu, mas na agonia de sua indecisão o pólipo mergulhou completamente sob a superfície da água, ali permanecendo vários minutos. Talvez estivesse mantendo uma discussão silenciosa com o companheiro, várias vezes começou a reemergir, mudou de idéia e voltou para a água. Hilvar aproveitou a oportunidade para trocar algumas palavras com Alvin.
— Gostaria de saber o que você está tentando fazer — disse, meio de brincadeira, meio seriamente. — Ou você próprio não sabe?
— É claro que sinto pena dessas pobres criaturas — respondeu Alvin. — Não acha que seria bondade libertá-las?
— Acho, mas já aprendi o bastante sobre você para saber que o altruísmo não é uma de suas emoções dominantes. Você deve ter algum outro motivo.
Alvin sorriu tristemente. Mesmo que Hilvar não lesse sua mente — e não havia motivo para supor que ele o fizesse —, sem dúvida era capaz de ler-lhe o caráter.
— Sua gente possui extraordinários poderes mentais — ele respondeu, tentando desviar a conversa de terreno perigoso. — Acho que poderiam fazer alguma coisa pelo robô, senão por esse animal. — Falava baixinho, para não ser ouvido. Tal precaução talvez fosse inútil, mas, se o robô interceptou suas observações, não deu o menor sinal.
Felizmente, antes que Hilvar pudesse levar o interrogatório adiante, o pólipo emergiu de novo. Nos últimos minutos tinha-se tornado bem menor e seus movimentos estavam mais desorganizados. Enquanto Alvin o olhava, um segmento de seu corpo complexo e translúcido soltou-se da parte principal e desintegrou-se em grande número de partes menores, que rapidamente desapareceram. A criatura estava começando a decompor-se diante de seus olhos.
Quando voltou a falar, sua voz era insegura e de difícil compreensão.
— Começando novo ciclo — ele conseguiu dizer, numa espécie de sussurro flutuante. — Não esperem rápido demais… restam somente minutos… estimulação grande demais… não haverá coesão por muito tempo.
Alvin e Hilvar fitavam a criatura tomados de hórrida fascinação. Muito embora o processo a que estavam assistindo fosse natural, não era nada agradável ver uma criatura inteligente aparentemente em agonia. Sentiam também uma obscura sensação de culpa, tal sentimento era irracional, uma vez que não tinha grande importância o momento em que o pólipo começava um outro ciclo, mas eles compreenderam que o esforço e a excitação pouco comuns causados por sua presença era responsável por aquela metamorfose prematura.
Alvin compreendeu que tinha de agir depressa, ou perderia sua oportunidade… talvez por alguns anos, ou por alguns séculos.
— O que você decidiu? — perguntou ansiosamente. — O robô vem conosco?
Houve uma pausa agônica enquanto o pólipo tentava obrigar seu corpo em dissolução a obedecer à sua vontade. O diafragma vocal agitou-se, mas nenhum som se ouviu. Depois, como num gesto desesperado de adeus, a criatura agitou debilmente seus palpos delicados e deixou-os voltar para a água, onde imediatamente se soltaram e saíram a flutuar pelo lago. Em questão de minutos a transformação se consumara. Não restava da criatura nenhum pedaço maior do que um dedo. A água estava cheia de flocos pequenos, esverdeados, que pareciam dotados de vida e mobilidade próprias, e que rapidamente desapareceram na vastidão das águas.
As pequenas ondas da superfície haviam agora cessado inteiramente, e Alvin entendeu que a pulsação contínua que eles haviam escutado nas profundezas também já teria cessado. O lago estava morto novamente — ou assim parecia. Mas era uma ilusão, algum dia, as forças desconhecidas que nunca haviam deixado de cumprir seu dever no passado voltariam a atuar e o pólipo renasceria. Era um fenômeno estranho e maravilhoso, no entanto, seria muito mais estranho do que a organização do corpo humano, uma vasta colônia de células separadas e vivas?
Alvin desperdiçou pouco esforço nessas especulações. Estava abatido por sua sensação de fracasso, ainda que jamais tivesse concebido claramente a meta a que visava. Uma oportunidade estupenda tinha sido perdida, uma oportunidade que talvez nunca mais voltasse. Olhou o lago pesarosamente, e passou-se algum tempo antes que sua mente registrasse a mensagem que Hilvar estava murmurando em seu ouvido.
— Alvin — dizia o amigo baixinho —, acho que você obteve o que queria.
Alvin girou rapidamente nos calcanhares. O robô, que até agora vinha flutuando, alheio a tudo, a distância, nunca se aproximando deles mais do que seis metros, havia-se movido em silêncio e estava agora a meio metro sobre sua cabeça. Os olhos imóveis, com largo ângulo de visão, não davam nenhuma indicação da direção de seu interesse. Provavelmente via todo o hemisfério à sua frente com igual clareza, mas Alvin tinha poucas dúvidas de que sua atenção estava concentrada nele.
A máquina estava esperando para ver o que ele faria em seguida. De certa forma, pelo menos, ela estava agora sob seu controle. Poderia acompanhá-lo a Lys, talvez até mesmo a Diaspar — a menos que mudasse de idéia. A partir de agora, Alvin era o seu senhor provisório.
A viagem de volta a Airlee durou três dias — em parte porque Alvin, por seus próprios motivos, não tinha nenhuma pressa de retornar. A exploração física de Lys fora agora suplantada por um projeto mais importante e mais excitante, ele estava aos poucos tomando contacto com a inteligência estranha e obcecada que se havia tornado seu companheiro.
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