Mas então algo aconteceu. Ela deu à luz prematuramente…
Não me admiro por você olhar desta forma. Eu tive uma criança. Um filho verdadeiramente meu. Você não encontrará outro Eterno, talvez, que possa dizer isso. Isso foi mais do que uma má conduta. Foi um crime grave, mas isso ainda não era nada.
Eu não o tinha esperado. O nascimento e seus problemas eram um aspecto da vida com o qual eu havia tido pouca experiência.
Voltei em pânico ao Esboço de Vida e encontrei a criança viva, num desvio alternado para uma pequena bifurcação de baixa probabilidade que eu havia desprezado. Um Esboçador de Vida profissional não a teria deixado passar, e eu havia agido mal por confiar a tal ponto em minhas próprias habilidades.
Mas o que poderia eu fazer, então?
Eu não podia matar a criança. A mãe tinha duas semanas de vida. Deixe o filho viver com ela, então, pensei eu. Duas semanas de felicidade não é um presente exorbitante para se pedir. A mãe morreu, como era previsto, e da maneira prevista. Sentei-me no quarto dela, durante todo o tempo permitido pelo mapa espaço-temporal, sofrendo de uma tristeza agudíssima, pelo fato de ter esperado pela morte, em pleno conhecimento, por mais de um ano. Em meus braços, segurei o filho meu e dela.
— Sim, eu o deixei viver. Por que você grita assim? Você vai me condenar?
Você não pode saber o que significa segurar nos braços um pequeno átomo de sua própria vida. Posso ter um computaplex no lugar de nervos e mapas espaço-temporais no lugar de corrente sangüínea, mas eu sei.
Eu o deixei viver. Cometi esse crime, também. Coloquei-o a cargo de uma organização apropriada e voltei, quando pude (em estrita seqüência temporal, mantida até mesmo com fisiotempo), para fazer pagamentos necessários e acompanhar o crescimento do garoto.
Dois anos passaram-se dessa forma. Periodicamente, eu examinava o Esboço de Vida do garoto (eu costumava quebrar esta regra particular, entrementes) e ficava satisfeito por descobrir que não havia sinais de efeitos nocivos na Realidade então corrente, a níveis de probabilidade acima de 0,0001. O garoto aprendeu a andar e a pronunciar algumas palavras. Não lhe ensinaram a chamar-me de “papai”. Sejam quais forem as especulações que os Tempistas da instituição infantil possam ter feito a meu respeito, não sei. Receberam seu dinheiro e nada disseram.
Então, quando dois anos se haviam passado, as necessidades de uma Mudança que incluía o século 575 numa parte foram expostas ao Conselho Geral. Eu, tendo sido posteriormente promovido a Computador-Assistente, fui encarregado. Essa foi a primeira Mudança deixada para minha supervisão exclusiva.
Fiquei orgulhoso, é claro, mas também apreensivo. Meu filho era um intruso na Realidade. Mal se podia esperar que ele tivesse análogos. Pensar em sua passagem à não-existência entristeceu-me.
Trabalhei na Mudança e creio mesmo assim que fiz um trabalho perfeito. O meu primeiro. Mas sucumbi diante de uma tentação. Sucumbi ainda mais facilmente porque ela estava se tornando uma velha estória para mim, então. Eu era um criminoso calejado, um habitue do crime. Elaborei um novo Esboço de Vida para meu filho sob a nova Realidade, certo do que iria encontrar.
Mas então, durante vinte e quatro horas, sem comer ou dormir, sentei-me à mesa de meu escritório, lutando com o Esboço de Vida terminado, torturando-me num esforço desesperador para encontrar um erro, Não havia erros.
No dia seguinte, de posse de minha solução para a Mudança, elaborei um mapa espaço-temporal usando métodos rústicos de aproximação (afinal, a Realidade não iria durar muito tempo), e entrei no Tempo num ponto a mais de trinta anos acima do nascimento de meu filho.
Ele estava com trinta e quatro anos, a mesma idade que eu tinha. Apresentei-me como um parente distante, usando do meu conhecimento da família de sua mãe. Ele não sabia de seu pai, não se lembrava de minhas visitas durante sua infância.
Ele era um engenheiro aeronáutico. O século 575 era perito em meia dúzia de variedades de viagem aérea (como ainda o é na Realidade corrente), e meu filho era um membro feliz e bem sucedido de sua sociedade.
Era casado com uma garota ardentemente enamorada, mas não teria filhos. Nem a garota teria de forma alguma se casado na Realidade em que meu filho não tinha existido. Eu soubera disso desde o começo. Soubera que não haveria efeitos nocivos na Realidade. Caso contrário eu não teria tido ânimo para deixar o garoto viver. Não estou completamente abandonado.
Passei o dia com meu filho. Falei-lhe formalmente, sorri polidamente, retirei-me calmamente quando assim o exigiu o mapa espaço-temporal. Mas por baixo de tudo isso, observei e assimilei cada ação, completando-me com ele e tentando viver pelo menos um dia numa Realidade que no dia seguinte (por fisiotempo) não mais teria existido.
Quanto desejei visitar minha esposa uma última vez, também, durante aquela porção de Tempo em que ela viveu, mas eu havia usado cada segundo que me tinha sido disponível.
Não ousei nem mesmo entrar no Tempo para vê-la, sem ser percebido.
Retornei à Eternidade e passei uma última noite horrível, lutando inutilmente contra o que tinha de ser. Na manhã seguinte, entreguei minhas computações juntamente com minhas recomendações para a Mudança.
A voz de Twissell tinha-se reduzido a um sussurro e depois cessou. Ele sentou-se ali com os ombros curvados, os olhos fixos no chão por entre os joelhos, os dedos trançando-se e entrando e saindo de um aperto intricado.
Harlan, esperando em vão cor uma outra frase do velho, pigarreou. Achou-se apiedando-se do homem, apiedando-se dele apesar dos vários crimes que tinha cometido.
— E isso é tudo? — perguntou.
— Não — murmurou Twissell — o pior… o pior… é que existiu um análogo de meu filho. Na nova Realidade, ele existiu… como um paraplégico, desde a idade de quatro anos. Quarenta e dois anos na cama, sob circunstâncias que me impediram de conseguir que as técnicas de regeneração de nervos dos séculos 900 fossem aplicadas ao seu caso, ou mesmo de conseguir que sua vida fosse tirada sem dor.
— A nova Realidade ainda existe. Meu filho ainda está lá, na porção apropriada do século. Eu fiz isso para ele. Foram minha mente e meu Computaplex que descobriram esta nova vida para ele, e minha palavra que ordenou a Mudança. Cometi uma série de crimes para o bem dele e de sua mãe, mas este último feito, embora estritamente em acordo com meu juramento de Eterno, sempre me pareceu ser o maior crime, o crime.
Nada havia a dizer, e Harlan nada disse.
— Mas você vê agora por que entendo seu caso — disse Twissell — por que quero deixar que você tenha sua garota. Isso não faria mal à Eternidade e, de certa forma, seria uma expiação para meu crime.
E Harlan acreditou. Tudo numa mudança de idéia, ele acreditou!
Harlan ajoelhou-se e levantou às têmporas os punhos cerrados. Inclinou a cabeça e balançou lentamente quando o selvagem desespero o atingiu.
Ele havia jogado fora a Eternidade e perdido Noys — enquanto que, se não fosse a sua destruição de Sansão, poderia ter salvo um e conservado o outro.
15. BUSCA ATRAVÉS DO PRIMITIVO
Twissell estava sacudindo os ombros de Harlan. A voz do velho chamava seu nome com insistência.
— Harlan! Harlan! Pelo amor do Tempo, homem! Harlan emergiu do desespero apenas lentamente. — O que devemos fazer?
— Não isto, certamente. Desespero, não. Para começar, ouça-me. Esqueça sua visão da Eternidade, da posição de Técnico e olhe-a através dos olhos de um Computador.
A visão é mais sofisticada. Quando você altera alguma coisa no Tempo e cria uma Mudança de Realidade, a Mudança pode ocorrer imediatamente. Por que deve ser isso?
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