Francisco Ficalho - Memorias sobre a influencia dos descobrimentos portuguezes no conhecimento das plantas

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Conde de Francisco Manuel de Melo Ficalho

Memorias sobre a influencia dos descobrimentos portuguezes no conhecimento das plantas / I. – Memoria sobre a Malagueta

INTRODUCÇÃO

Os descobrimentos dos portuguezes nos seculos XV e XVI constituem uma das feições mais salientes da época, porventura a mais notavel da historia. N'aquelle periodo em que o espirito humano, quebrando as peias das severas e estreitas tradicções da edade média, e parecendo ter a intuição de tudo quanto é elevado e bello, abre novos horisontes nas sciencias, nas lettras e nas artes; os limites do mundo physico tornam-se, como os do mundo moral, apertados para as aspirações de uma grande e forte geração, e rasgam-se com elles, perante o seu singular poder expansivo. Um povo pequeno, situado no extremo occidental do mundo até então explorado, lançando-se em perigosas e heroicas aventuras nos mares incognitos e tenebrosos, dá o primeiro impulso a uma serie de descobrimentos, que, em menos de um seculo, dobram perante as nações maravilhadas a extenção das terras conhecidas. Mares e climas novos, raças humanas ignoradas, animaes e vegetaes estranhos e variados se patenteiam, em rapida successão, a uma geração curiosa e avida de informações. Mais de uma vez se tem apontado, o quanto estes novos aspectos do mundo physico deviam influir nos animos, alargando as idéas e destruindo antigos preconceitos; mas não cabe n'este trabalho o quadro, nem mesmo o esboço, de taes transformações.

Limitando-nos rigorosamente ao nosso assumpto, é licito affirmar, que em época alguma se accrescentaram tantas e tão variadas fórmas vegetaes ao peculio das já conhecidas. A vegetação inteiramente nova das terras de[4] Santa Cruz, ou da Africa meridional, e as ricas floras da India, do archipelago malayo e da China, antes apenas entrevistas e agora observadas de perto, enriqueceram, por modo sem egual em tão curto periodo, o conhecimento do mundo vegetal.

É certo, que as plantas se não estudaram então systematicamente, e muitos annos decorreram, antes que as fórmas vegetaes se grupassem com methodo, e se descrevessem com rigor. Todavia, grande numero de ricos e uteis productos vegetaes attrairam desde logo as attenções, e encontramos dispersas nas obras dos navegadores e escriptores portuguezes e hespanhoes, muitas noticias curiosas, e muitas informações exactas, sobre a sua naturesa e a sua origem. Basta citar, entre muitos outros, Duarte Barbosa, Thomé Pires, Garcia da Orta, Christovão da Costa, Oviedo, e Nicolau Monardes para provar com quanto interesse, e em muitos casos, com que espirito do rigor scientifico se observam as plantas então descobertas.

Estudar sob este ponto de vista a historia dos nossos descobrimentos, e do nosso dominio nas terras da Africa, da Asia e da America, buscando nos documentos contemporaneos as provas do conhecimento que os portuguezes tiveram dos vegetaes, e esclarecendo á luz da moderna sciencia alguns pontos duvidosos ou obscuros das suas narrações, seria sem duvida muito interessante e util. Ao interesse, que se liga á elucidação de mais uma consequencia d'aquelle grande facto historico reune-se uma verdadeira utilidade scientifica, porque as sciencias naturaes não vivem só do presente, não se desenvolvem unicamente pelas recentes observações, e pelas descripções de novas especies, mas vivem tambem do passado, e adquirem vigor e auctoridade, quando os periodos do seu aperfeiçoamento se prendem ás successivas phases da evolução do espirito humano.

Considerado este estudo de um modo geral, daria logar a um trabalho em extremo difficil e longo, pois só teria valor quando apoiado em provas, que demandam investigações. É, porém, possivel reunir pouco a pouco materiaes para esse trabalho de maior vulto, em noticias especiaes sobre plantas, regiões, ou épocas particulares. Eis o que tentei n'esta memoria em relação a uma planta, que teve uma época de celebridade.

Refiro-me ao Amomum Granum paradisi , cujas sementes foram conhecidas dos nossos navegadores sob o nome da malagueta . Esta substancia tem hoje[5] pouca importancia, e quasi anda esquecido o seu nome e applicado vulgarmente aos fructos de outra planta, que, com a malagueta da Africa, não tem relações nem semelhança. Não succedeu porém sempre assim, e, como ao diante veremos, foi droga muito procurada e apreciada. Das especiarias, que na edade média gozavam de nomeada, foi a malagueta a primeira que os navegadores portugueses encontraram logo no começo dos seus descobrimentos, e a primeira de cujo trafico se senhorearam desviando-o dos caminhos até então seguidos, e tanta importancia adquiriu nas suas mãos, que uma parte do litoral africano veiu a receber o nome de Costa da Malagueta. Primeira, na data do descobrimento, entre as especiarias que enriqueceram o nosso commercio, pareceu-me que a malagueta devia ser o assumpto d'esta primeira memoria.[6]

[7]

I

Do conhecimento que houve da malagueta antes e durante as viagens dos portuguezes

É muitas vezes difficil, e não poucas impossivel, averiguar a que plantas se referem os auctores antigos, encontrando-se em suas descripções, quasi sempre vagas, muitas causas de duvida, mórmente quando tratam de drogas vindas de regiões afastadas, e de que tinham imperfeito conhecimento. Theophrasto, e mais tarde Dioscorides e Plinio, nomeiam diversas drogas aromaticas e pungentes, e tiveram noticia, entre outras, da pimenta e do cardamomo. É certo, que algumas inexactidões na relação dada d'estas plantas, particularmente por Plinio, nos levam a crer que confundissem sob a mesma designação productos de diversas origens vegetaes; não ha porém motivo para suppor que entre esses productos figurasse a malagueta , attendendo sobretudo á obscuridade, que ainda no tempo de Plinio envolvia as terras d'onde é natural 1 1 Theophrasto menciona o χαρδαμωμον como procedente da India (Hist. pl. IX, 7, p. 147. ed. Wimmer) e egualmente o πεπερι (H. pl. IX, 20, p. 162). Dioscorides falla das mesmas substancias (lib. I, cap. V, p. 15 e cap. CLXXXVIII, p. 298 ed. Sprengel). Veja-se tambem Plinio (Hist. nat. L. XII, cap. VII et XIII). Laguna, nos seus commentarios a Dioscorides, pretendeu identificar um dos cardamomos do auctor grego com a malagueta . É porém erro manifesto, e que não passou inadvertido pelo nosso Garcia da Orta ( Colloq. dos simples etc., p. 50 ed. 1872). Em quanto ao χμωμον dos antigos, é planta muito duvidosa, mas parece ser o Cissus vitiginea L. e em todo o caso é muito afastada d'aquellas especies que depois, por errada applicação do nome, se gruparam no genero Amomum . Veja-se o erudito commentario de Sprengel no seu Dioscorides (tom. II, p. 345, 352 e 475). Veja-se tambem a ( Synopes pl. fl. classicae. de C. Fraas, p. 198 e 278). .[8]

Encontramos nos livros de medicina e materia medica de alguns escriptores arabes, como por exemplo nos de Serapio e de Avicenna, mencionadas diversas drogas africanas. Na época, em que estes celebrados medicos composeram as suas obras, isto é do IX e X seculo em diante, já os productos do Sudan começavam a ser conhecidos no Egypto, e na Africa septentrional pelas viagens, que faziam as kafilas de mercadores através do Sahará, e parece provavel, que a malagueta fosse um d'esses productos. As referencias muito succintas, que se encontra em seus livros, deixam-nos porém, na maior parte dos casos, em muita incerteza e não temos fundamento para affirmar que a conhecessem e descrevessem, antes temos razão para suppor, ou pela descripção das drogas, ou pela indicação da sua procedencia, que se referiam a outras substancias vegetaes 2.

A primeira menção da droga pelo nome ainda hoje usado, de que tenho noticia, é do começo do XIII seculo, e encontra-se casualmente na descripção[9] de uma festa celebrada em Treviso no anno de 1214. Figurou n'esta especie de justa, ou torneio uma fortaleza ricamente ornada, cuja defeza estava entregue a doze das mais illustres e mais formosas senhoras, accompanhadas de suas donzellas, e que devia ser assaltada pelos moços cavalleiros, armados de flores, aguas aromaticas e custosas especiarias; infelizmente o fingido assalto transformou-se em seria peleja, porque os cavalleiros paduanos e venezianos, pressurosos, como é bem de crer, de correrem ao combate, se desavieram entre si, ficando alguns mal feridos na contenda, e rotos os estandartes de suas cidades. Entre as especiarias enumeradas na relação d'esta festa figura a melegeta 3. Depois d'esta primeira menção encontramos numerosas indicações de quanto aquella substancia foi conhecida e usada durante a edade média.

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