Francisco Ficalho - Memorias sobre a influencia dos descobrimentos portuguezes no conhecimento das plantas
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Resta examinar a origem africana, a qual se póde encontrar nos numerosos e variados dialectos usados pelas populações negras da região aonde a planta se cria, ou ainda nas linguas dos povos que com ellas negoceiavam. Dois povos de raça diversa se empregaram no activo commercio feito por um lado com os europeus, e por outro com as populações de raça negra; commercio de que os nossos escriptores tiveram, como vimos, noticia, e de que Leão Africano dá relação com a clareza e intimo conhecimento de quem n'elle tomou parte. Foram esses povos os arabes e os berberes: estes, os numidas ou libyanos dos antigos, fallam uma lingua bem distincta do arabe, e que nem mesmo se póde filiar no grupo semitico, mas sim em um grupo um pouco vago, de que o coptico parece ser o typo, para o qual se propoz o nome de «chamitico 34.» Dominados pelos semitas e em contacto por duas vezes com linguas semiticas, isto é, com a lingua punica dos colonos carthaginezes, e seculos[20] depois com a arabica, aceitando o dominio dos arabes e recebendo mesmo d'estes a religião mahometana, alguns berberes conservaram no entanto lingua e costumes proprios. Ainda mais; os povos berberes de raça pura, como os Tuareg, mais entranhados no deserto, e mais afastados do elemento arabe, que tão profundamente tem penetrado todo o norte da Africa, não só fallam uma lingua distincta, mas conservam o uso de um alphabeto especial, semelhante ao das inscripções libycas 35. O mais antigo historiador dos descobrimentos portuguezes, Gomes Eannes de Azurara, teve conhecimento dos berberes, que chamou azanegues e barbaros, e da distincção entre a linguagem mourisca e «a azaneguya do Zaara»; e ainda mais, relatando a viagem do heroico escudeiro João Fernandes, dá conta de usarem de uma lettra com que escrevem «de outra guisa» que a dos mouros 36, facto curioso, ignorado ou posto em duvida durante muito tempo, e demonstrado pelas modernas investigações scientificas.
É pois no arabe, no berbér, ou nas linguas do Sudan e da costa occidental que se deve procurar a origem da palavra, se porventura é africana.
Devemos no entanto notar que os nomes arabes, hoje mais usados, não tem relação ou semelhança com a palavra malagueta . São estes nomes teen el felfel e tamar el felfel , o que vale o mesmo que pimenta figo e pimenta tamara , derivados por um lado da ardencia das sementes, e por outro de uma vaga semelhança na fórma dos fructos, quando mais desenvolvidos, com os figos, quando menores, com as tamaras.
Vem expressa em varias obras, sobretudo francezas, a opinião de que o nome da droga se deriva do nome de uma villa ou logar de Africa, chamado Melega , d'onde era trazida para a Europa. Da existencia de tal villa não pôde achar noticia, e creio, que alguns desses auctores se equivocaram com a costa da Malagueta, e que os outros, como tantas vezes succede, repetiram a asserção sem se darem ao trabalho de procurar os seus fundamentos 37.[21]
Nos dialectos dos negros os nomes da droga são variadissimos o pela maior parte absolutamente diversos e afastados no som e na fórma da palavra malagueta 38. Diz-nos porém o sr. Daniell, que entre os negros Krus habitantes da costa que vae do cabo Mesurado ao das Palmas, o nome vulgar é Guetta , ao qual frequentes vezes se juntam as prefixas mane ou malé , e tem por certo ser esta a origem da palavra. É possivel, mas não tão seguro, nem tão fóra de discussão como parece ao dr. Daniell, pois se póde bem admittir que o nome usado pelos Krus seja a corrupção do vocabulo empregado pelos portuguezes e outros europeus, o que é tanto mais provavel quanto os Krus não são uma população do interior, mas sim um povo da costa, muito dado á navegação, e como tal um dos que tem sempre tido mais contacto com os estrangeiros.
Em todo o caso, se a palavra pertence ao dialecto dos negros foi-nos transmitida pelos povos do norte da Africa, unicos que até ás viagens portuguezas tiveram contacto com aquellas regiões. Devemos pois admittir que espalhando-se o seu uso pelo interior da região de Mandinga, se tornasse vulgar em Timbuktu e outros grandes mercados do Sudan. Os arabes e os berberes, que a esses mercados concorriam trouxeram a droga, e com a droga o nome, pelo caminho do Dar-Fur ao alto Nilo, e d'ahi aos portos do Egypto, ou pela via mais seguida do Fezzan aos portos de Tripoli. Mercadores de varias nações, e na época a que nos referimos, principalmente os venezianos, navegavam para esses portos, e desde o começo do XIII seculo, se não antes, introduziram a droga na Europa e usaram o nome malagueta ou melegeta .
Em resumo a origem da palavra permanece obscura, e unicamente temos[22] como certo, que os italianos foram os primeiros, entre os povos da Europa, a empregal-a, quer a derivassem da semelhança da droga com o sorgo, chamado melega , quer usassem, o que é mais provavel, de uma denominação vulgar eutre os africanos.
III
Das plantas que produzem a malagueta, e da sua distribuição geographica
Como mais de uma vez tenho observado, existe uma tendencia geral a applicar o mesmo nome a productos distinctos, mas semelhantes ou de propriedades analogas, e que se confundem ou substituem mutuamente no commercio. Por outro lado nas diversas regiões e épocas se tem dado nomes differentes á mesma substancia. D'aqui resulta uma certa confusão de nomes vulgares, da qual póde provir obscuridade, e que exige algumas palavras de explicação.
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1
Theophrasto menciona o χαρδαμωμον como procedente da India (Hist. pl. IX, 7, p. 147. ed. Wimmer) e egualmente o πεπερι (H. pl. IX, 20, p. 162). Dioscorides falla das mesmas substancias (lib. I, cap. V, p. 15 e cap. CLXXXVIII, p. 298 ed. Sprengel). Veja-se tambem Plinio (Hist. nat. L. XII, cap. VII et XIII). Laguna, nos seus commentarios a Dioscorides, pretendeu identificar um dos cardamomos do auctor grego com a malagueta . É porém erro manifesto, e que não passou inadvertido pelo nosso Garcia da Orta ( Colloq. dos simples etc., p. 50 ed. 1872). Em quanto ao χμωμον dos antigos, é planta muito duvidosa, mas parece ser o Cissus vitiginea L. e em todo o caso é muito afastada d'aquellas especies que depois, por errada applicação do nome, se gruparam no genero Amomum . Veja-se o erudito commentario de Sprengel no seu Dioscorides (tom. II, p. 345, 352 e 475). Veja-se tambem a ( Synopes pl. fl. classicae. de C. Fraas, p. 198 e 278).
2
Serapio ( De simpl. med. opus etc. pars II. 327. ed. Othonis Brunfelsii 1531.) falla de uma droga, a que dá o nome de hab el zelim e tambem segundo a Cyclopaedia de Rees e o dr. Hooker ( Fl. nigr. p. 206) o de fulful alsuadem , (deve antes ler-se felfel el sudan pimenta da terra dos negros). Esta substancia tem sido geralmente identificada com o Piper AEthiopicum de Matthioli, e o Piper nigrorum Serapioni de Bauhinio, que é uma Anonacea, a Xylopia AEthiopica (Veja-se o que disse nas Noticias sobre alguns pr. veg. da Afr. Portugueza no Jornal de Sc. math. etc. num. XXII 1877. p. 105). A verdade é, que Serapio na citada passagem se refere a tres substancias diversas: uma o hab el zelim tambem chamado Piper nigrorum ( felfel el sudan ): outra o verdadeiro Piper nigrorum a que na Barbaria chamam croni : e uma terceira das terras de Chedensor chamada habese . Se uma d'estas subtancias é a Xylopia Æthiopica , as outras são de mui difficil identificação pela deficiencia das indicações.
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