— Viu! Perfeito!
— Nós aprendemos isso há pouco ou sempre soubemos e nunca perguntamos? — Antes que eu pudesse começar a responder, ela me pôs à prova outra vez: — A aritmética.
Não conseguíamos aplicar o princípio a qualquer coisa, mas tínhamos êxito com quase todo sistema, atividade ou profissão.
Programação de computadores, cinema, comércio varejista, boliche, indústria, aviação, agricultura, engenharia, arte, educação, iatismo… Por trás de quase tudo achávamos uma metáfora com a mesma concepção serena do funcionamento do universo.
— Leslie, você tem a sensação de que… Somos agora as mesmas pessoas que éramos antes?
— Acho que não. De cada vez que aprendemos, ficamos diferentes, não é? Se voltássemos inalterados depois “do que aconteceu… Não é isso que você quer dizer, não é?
— Quero dizer diferentes de verdade — falei, mantendo a voz baixa.
— Olhe em volta para as pessoas neste restaurante.
Leslie olhou, durante bastante tempo.
— Talvez isso vá passar, mas…
— …nós conhecemos todas as pessoas aqui — completei. Na mesa a nosso lado estava uma mulher vietnamita, grata à gentil, cruel e odienta América, orgulhosa das duas filhas, as mais adiantadas na escola. Compreendemos tudo, orgulhamo-nos por ela e pelo que tinha feito para que a vida corresse daquela maneira.
Do outro lado do salão, quatro adolescentes riam e davam tapas uns nos outros, sem se importarem com as outras pessoas, procurando chamar a atenção por motivos que não compreendiam. Ecoaram em nossos corações as lembranças daqueles anos penosos e desajeitados de nossas próprias vidas, gerando uma compreensão instantânea.
Sozinho, um rapaz estudava para os exames finais, desligado de tudo, menos da página diante de si, acompanhando gráficos com o lápis. Sabia que com toda certeza nunca mais na vida elaboraria tabulações de momentos de flexão de vigas I, mas sabia também que o importante é o caminho do aprendizado, e que cada passo nesse caminho é importante. Nós também sabíamos.
Um casal de cabelos grisalhos, bem vestido, conversava em voz baixa num reservado. Eram tantas coisas a lembrar sobre o que tínhamos feito de uma vida, era tão confortador termos agido da melhor forma que podíamos, termos planejado futuros que ninguém mais poderia imaginar.
— Que sensação esquisita! — comentei.
— É mesmo — concordou Leslie. — Isso nunca havia acontecido antes?
Algumas experiências de sair do corpo, pensei, tinham uma certa unidade cósmica. Mas eu nunca tivera a sensação de formar uma unidade com pessoas enquanto plenamente desperto, sentado num restaurante. — Não desse jeito. Acho que não. — Lembranças dispersas, que remontavam ao passado mais longínquo, uma ligação diáfana com todos os demais, subjacente ao que parecia ser nossas diferenças.
Unicidade, dissera Pye. É difícil criticar, pensei, é difícil julgar quando somos nós que estamos sob a luz do refletor. Não há necessidade de julgamento quando já compreendemos.
Unicidade. Em vez de estranhos, pensei, serão aqueles jovens que fomos, as almas sábias em que ainda temos de nos converter? Um foco de aconchegante e esperançosa curiosidade ligava um de nós a outra pessoa, um calmo e silencioso prazer ante nosso poder de construir vidas, aventuras e anseios de saber.
Unicidade. Do outro lado da cidade, eram eles também nós?
Anônimos e celebridades, traficantes e policiais, promotores, terroristas e músicos?
Aquele prazeroso conhecimento permaneceu conosco, enquanto conversávamos. Não é o conhecimento que surge e desaparece, pensei, é a percepção que temos dele. O que vemos é nossa consciência, e quando essa consciência é afastada, como as cenas se modificam! Somos, neste mundo, apenas reflexos, somos espelhos vivos uns dos outros, somos nossa própria famí lia querida, que enfim se reencontra após uma longa separação.
— Acho que aconteceu conosco muito mais do que estamos começando a perceber — disse Leslie.
— É como se nosso vagonete corresse sobre um milhão de chaves, querida, e estivéssemos vendo os trilhos mudarem debaixo de nós. Onde vamos sair, para onde estamos nos dirigindo?
A noite caiu enquanto conversávamos. Nós nos sentíamos como amantes que se reencontrassem no paraíso — éramos as mesmas pessoas que tínhamos sido, mas agora lembrávamos quem éramos antes, havíamos vislumbrado o que poderíamos realizar em nosso futuro.
Saímos por fim do restaurante, enlaçados novamente, para a noite e a cidade. Caminhávamos, carros passavam nas ruas para norte, sul, leste, oeste, um garoto fez uma curva graciosa, num skate, à nossa volta, com um guinchar de rodas. Todos nós seguindo nossos caminhos, ao encontro das escolhas deste minuto, desta noite, desta vida.
Às 8:45h da manhã seguinte entramos por um caminho arborizado, até o alto de um morro, e paramos numa área de estacionamento ajardinada. As vagas para os carros ficavam entre canteiros de flores. Tomamos uma das várias alamedas em direção ao salão de conferências, entre explosões de narcisos, tulipas e jacintos, entremeadas por minúsculas flores prateadas. Perfumes suaves flutuavam pelo ar. Spring Hill, de verdade!
Dentro do edifício, deparamo-nos diante de um salão com muitas janelas, em balanço sobre o mar. Os raios do sol faiscavam na água, lançando reflexos no teto do salão.
Num arco amplo, dispunham-se duas fileiras de cadeiras, separadas por um corredor. Depois das cadeiras havia um estrado baixo, três quadros negros, um microfone sobre um pé prateado.
Paramos junto a uma mesa dentro do salão. Havia ali apenas dois crachás com nomes, dois envelopes, dois cadernos e duas canetas: os nossos. Éramos os últimos a chegar, os últimos de cinqüenta e poucas pessoas que tinham viajado muitos milhares de quilômetros para participar daquele encontro de mentes.
Homens e mulheres cumprimentavam-se entre as cadeiras. Uma mulher aproximou-se do quadro-negro central e escreveu o título de um assunto e seu nome.
Um homem corpulento, de cabelos negros raiados de prata, caminhou até o meio do arco.
— Sejam bem-vindos — disse com firmeza ao microfone.
— Bem-vindos a Spring Hill. Parece que estamos todos aqui…
— Esperou que localizássemos nossos assentos.
Leslie e eu acabamos de prender nossos crachás, e olhamos, juntos, para o homem que falava. Foi como se levássemos um murro no estômago.
Virei-me para ela no mesmo instante em que ela se virava para mim.
— Richie! Ê…
O homem dirigiu-se ao quadro-negro central, pegando um pedaço de giz.
— Por acaso, alguém ainda não registrou o título de sua palestra? Os Bach, que acabaram de chegar… A palestra de vocês é…
— ATKIN! — exclamei.
— Pode me chamar de Harry — disse ele. — A palestra de vocês tem título?
Eu tinha a impressão de que estávamos de volta ao desenho, que havíamos pousado em algum anexo da fundição de idéias. Não fossem as marcas de alguns anos a mais, era o mesmo homem. Não estávamos em Los Angeles, pensei. Por acaso tínhamos confundido…
— Não. Não há título. Nem palestra — respondi. Algumas cabeças voltaram-se momentaneamente para nós.
Rostos estranhos, porém… Leslie tocou-me a mão.
— Não pode ser — murmurou. — Mas é uma coincidência esquisita!
Naturalmente. Harry Atkin nos convidara. Fora o nome dele, estampado na carta, que nos levara até ali, conhecíamos seu nome antes de sairmos de casa.
— Mas ele se parece tanto com Atkin!
— Alguém mais? — perguntou Harry. — Quinze minutos no máximo, lembrem-se, para a primeira rodada de palestras. Seis palestras e um intervalo de quinze minutos. Mais seis e o almoço, durante uma hora. Outros títulos?
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