— Este dinheiro é para si!
Em seguida bebeu o resto do vinho e veio ter comigo. Já na rua, sentia uma grande pressa de chegar a casa.
Sabia que era de má vontade que ele voltava comigo; sabia que me desprezava e detestava o sentimento que o impelia para mim sem que o pudesse impedir. Mas eu tinha a maior confiança na minha beleza e no meu amor por ele e estava impaciente por afrontar a sua hostilidade com essas armas; sentia de novo uma vontade agressiva e alegre, e que o meu amor seria mais forte do que a sua aversão, que ao calor da minha chama o seu metal duro acabaria por se fundir e ele amar-me-ia por sua vez.
Caminhando a seu lado na grande avenida deserta às primeiras horas da tarde, disse-lhe:
— Vais prometer-me que, uma vez em minha casa, não procurarás ir-te embora.
— Prometo.
— Vais prometer-me ainda outra coisa.
— Qual?
Hesitei, depois disse:
— Da outra vez tudo se teria passado bem se não te tivesses posto, a certa altura, a olhar para mim de uma maneira que me envergonhou. Tens de me prometer que não tornas a olhar-me daquela maneira.
— De que maneira?
— Não sei… de uma maneira maldosa.
— Não se comanda o olhar — disse-me. — Se quiseres, nem te olharei, fecharei os olhos. Está bem?
— Não, não está! — insisti com obstinação.
— Mas de que maneira queres que olhe para ti?
— Como eu te olho — respondi-lhe.
Sem parar, segurei-lhe o queixo e mostrei-lhe a maneira como me devia olhar.
— Assim, com doçura.
— Ah! Ah! Com doçura!
Quando chegamos à minha escada suja e lúgubre, não pude impedir-me de me lembrar da casa de Gisela, branca, asseada e límpida. E disse como se falasse comigo:
— Se eu não morasse numa casa suja, se não fosse a desgraçada que sou, com certeza te agradaria mais!
Parou de repente, segurou-me pela cintura com as duas mãos e disse-me num tom sincero:
— Se pensas isso, podes estar certa de que te enganas. Pareceu-me ver nos seus olhos qualquer coisa muito parecida com afecto. Ao mesmo,tempo curvou-se sobre mim e procurou-me a boca. O seu hálito cheirava muito a vinho. Nunca pude suportar o cheiro do vinho, mas neste momento, na sua boca, parecia-me agradável e puro, quase comovente, como o seria na boca de uma criança inexperiente. Compreendi que as minhas palavras tinham, sem que o tivesse procurado, tocado o seu ponto sensível. Pareceu-me, como já disse, ter feito nascer nesse momento na sua alma a centelha da afeição. Em seguida percebi que ele agia mais por ponto de honra e que, ao beijar-me, não obedecia tanto a um gesto de amor, que não sentia, como, à sua maneira, a uma espécie de chantagem moral. Mais tarde estimulei-o da mesma maneira mais vezes, acusando-o de me desprezar pela minha pobreza e pela minha profissão. Obtive sempre o mesmo resultado favorável aos meus desejos, ao mesmo tempo que completava o meu conhecimento da sua pessoa — um conhecimento singularmente humilhante e falaz. Mas nesse dia não o conhecia ainda como depois. E esse beijo deu-me uma grande alegria, como se fosse uma vitória definitiva. Satisfeita com o gesto, contentei-me em aflorar os seus lábios, pegar-lhe na mão e dizer-lhe:
— Vamos. Vamos para cima! Corre! — e puxava-o, fazendo-o galgar alegremente até ao último andar. Ele deixava-se levar sem pronunciar palavra.
Cheguei ao meu quarto quase a correr, arremessando-o como a um boneco contra a parede do vestíbulo. Entrei violentamente, e assim que cheguei junto da cama atirei-o para lá. Só então percebi que ele não estava apenas bêbado, mas, como me prevenira, parecia sentir-se mal. Estava extremamente pálido, passava a mão pela testa como se estivesse tonto e tinha nos olhos um brilho vacilante e perturbado. Vi tudo isso apenas com um olhar e fiquei logo com medo de que desmaiasse, e que do nosso segundo encontro nada resultasse outra vez. Por um instante, ao andar de um lado para o outro para me despir, senti um vivo remorso, como que um desespero, por não o ter impedido de beber. Mas note-se que nem sequer me passou pela ideia renunciar a este amor tão desejado. Só tinha uma esperança: que não se sentisse mal a ponto de não me poder amar, ou que, se a indisposição fosse verdadeiramente forte, os seus efeitos se fizessem sentir depois, e não antes, de ter satisfeito o meu desejo. Estava realmente apaixonada por ele; mas tinha tanto medo de o perder que o meu amor não ultrapassava os limites do meu egoísmo.
Portanto, fingi não notar a sua embriaguez, e depois de despida sentei-me na cama a seu lado. Tinha ainda o sobretudo vestido como quando tinha entrado. Ajudei a despi-lo. Enquanto o fazia, ia-lhe falando para o distrair e impedir de pensar em se ir embora.
— Ainda não me disseste quantos anos tens — disse-lhe tirando-lhe o sobretudo pelas mangas, enquanto ele levantava docilmente o braço para me auxiliar nos meus esforços.
Respondeu passado um momento:
— Tenho dezanove anos.
— Tens menos dois do que eu.
— Tu tens vinte e um?
— Quase vinte e dois.
Os meus dedos procuravam desmanchar-lhe o nó da gravata. Lentamente ele afastou-me e desfez o nó. Depois deixou cair os braços e tirei-lhe a gravata.
— Está velha a tua gravata — disse-lhe. — Hei-de comprar-te uma. De que cor queres?
Ele riu. Gostava de o ver rir, porque tinha um riso amável e gentil.
— Tu queres por força sustentar-me! — disse. — Primeiro querias pagar-me o almoço e agora queres comprar-me uma gravata?
— Que disparate! — disse-lhe com ternura. — Que mal te pode isso fazer? Eu tenho gosto em oferecer-te uma gravata: isso não pode contrariar-te!
Enquanto me ouvia, tirara o casaco e o colete e estava sentado na beira da cama em mangas de camisa.
— Nota-se que tenho dezanove anos? — perguntou-me.
Agradava-lhe sempre falar dele; depressa o descobri.
— Sim e não — disse hesitando, vendo que isso o lisonjeava. — Vê-se sobretudo pelos cabelos — acrescentei acariciando-lhe a cabeça. — Um homem tem o cabelo menos forte. Na cara não.
— Que idade me darias?
— Vinte e cinco.
Calou-se e fechou os olhos como se fosse vencido pela embriaguez. De novo tive medo que se sentisse mal e apressei-me a ajudá-lo a tirar a camisa, acrescentando:
— Fala-me mais de ti. És estudante?
— Sou.
— Em que curso estás?
— Direito.
— Vives com a tua família?
— Não, a minha família mora na província, em S…
— Estás numa pensão?
— Não, tenho um quarto mobilado — respondeu-me mecanicamente de olhos fechados. — Na Rua Cola di Rienzo, 20, apartamento 8, em casa da viúva Medolaghi, Amélia Medolaghi.
Tinha o tronco nu. Não resisti à tentação de lhe passar gulosamente as mãos sobre o peito e o pescoço dizendo:
— Porque ficas assim? Não tens frio?
Levantou a cabeça e olhou-me. Depois riu-se e disse-me com uma voz um pouco áspera:
— Julgas que eu não percebo?
— O quê?
— Que me despes disfarçadamente? Estou embriagado, mas não a esse ponto.
— E então! — respondi, desconcertada. — Mesmo que assim fosse, que mal há nisso? Devias ser tu a fazê-lo, mas como não fazes, auxilio-te.
Parecia não me ouvir — Estou bêbado — continuou, abanando a cabeça —, mas sei muito bem o que faço e porque estou aqui. Não preciso de ajuda… Olha!
Bruscamente, com gestos violentos que a magreza fazia parecer serem de louco, tirou o cinto, fez voar para longe as calças e tudo o que tinha ainda vestido:
— E sei também o que esperas de mim! — acrescentou apoiando as mãos nas minhas ancas.
As suas mãos, fortes e nervosas, apertavam-me e nos seus olhos a bebedeira parecia ter cedido o lugar a uma espécie de enérgica malícia. Esta malícia tornei a encontrá-la mesmo nos momentos em que parecia abandonar-se completamente. Era um claro indício da sua lucidez de consciência, que conservava sempre, fosse o que fosse que fizesse, e que — acabei por descobrir mais tarde com mágoa — o impedia de se entregar e amar realmente.
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