— É isto que queres, não é? — acrescentou sem me largar, enterrando-me as unhas na carne. — E depois isto, isto?
De cada vez que dizia isto tinha um gesto de amor, beijando-me, mordendo-me e beliscando-me traiçoeiramente com as duas mãos nos sítios onde eu menos esperava. Eu ria, defendia-me, debatia-me, estava demasiadamente feliz por ver acordar o seu desejo para notar o que havia de forçado e de insincero na sua atitude. Magoava-me como se o meu corpo fosse para ele um objecto de ódio e não de amor. Julguei ver brilhar nos seus olhos, em vez de desejo, uma espécie de cólera. Depois o seu frenesi terminou de repente, como tinha começado. De uma maneira curiosa, inexplicável, talvez por estar dominado pela embriaguez, deixou-se cair de costas na cama a todo o comprimento e encontrei-o ao meu lado com a bizarra impressão de que ele não se mexera, nem me falara, que nunca me tinha tocado, nem beijado, como se tudo estivesse ainda por começar.
Fiquei muito tempo imóvel, ajoelhada na sua frente sobre a cama, os cabelos nos olhos, olhando-o e aflorando de vez em quando timidamente com a ponta dos dedos o seu belo corpo alongado, magro e puro. Tinha a pele branca debaixo da qual sobressaíam os ossos, os ombros largos e magros, as ancas estreitas e as pernas longas; não tinha pêlos, salvo alguns no peito; a posição em que estava, deitado de costas, esticava-lhe o ventre de maneira que o púbis parecia estendido como uma oferta. Em amor eu não gosto de violência; por isso me parecia que nada se tinha passado entre nós, que tudo estava ainda no princípio. Deixei, pois restabelecer-se a calma e o silêncio depois deste tumulto irônico e fictício, e quando me senti de novo no estado de alma apaixonado e sereno que me é habitual, lentamente, do mesmo modo que durante o tempo quente se entra lentamente na água deliciosa de um mar calmo, estendi-me ao seu lado, entrelacei as minhas pernas nas suas, rodeei-lhe o pescoço com os braços e apertei-me contra ele. Desta vez não se mexeu nem falou até ao fim. Eu chamava-lhe os nomes mais doces, respirava sobre o rosto, envolvia-o na rede apertada e quente das minhas carícias, e ele, como se estivesse morto, jazia deitado de costas, imóvel. Mais tarde soube que esta passividade sem participação era a maior prova de amor que ele podia dar.
Muito mais tarde, durante a noite, levantava-me apoiada no cotovelo e contemplava-o com uma intensidade da qual guardo, passado tanto tempo, uma recordação extraordinariamente precisa e dolorosa. Dormia de perfil, com a cara enterrada na almofada. O ar de dignidade vacilante que parecia querer conservar a todo o custo abandonara-o. Nos seus traços, que o sono tornava sinceros, nada mais restava do que a sua pouca idade, antes com uma ingenuidade e uma frescura impossíveis de definir do que com uma expressão que reflectisse qualquer qualidade ou inclinação particulares de alma. Mas lembrava-me de que o tinha visto ora malicioso, ora hostil e indiferente. ora cruel, ora cheio de desejo, e experimentava uma insatisfação triste e ansiosa, porque pensava que esta malícia, esta hostilidade, esta indiferença, este desejo, todas estas coisas que o personalizavam e que o distinguiam de mim e dos outros, partiam de um centro profundo que para mim ficava longínquo e secreto. Não desejava que ele me explicasse estas atitudes, desmontando-as e analisando-as por palavras, como se desmontam as peças de uma máquina. Desejaria conhecê-las nas suas raízes mais fundas por um simples acto de amor, e ainda o não tinha conseguido. O pouco que me escapava da sua pessoa era todo ele e o muito que não me escapava não tinha qualquer importância; não sabia que fazer. Gino, Astárito e mesmo Sonzogne estavam mais próximos de mim, conhecia-os melhor. Olhava-o e sentia a parte mais profunda de mim própria sofrer por não ter podido unir-se ao que ele tinha de mais profundo, como acabavam de unir-se os nossos corpos. Ela estava viúva e chorava amargamente esta ocasião perdida. Talvez, enquanto nos amávamos, tivesse havido um momento no qual ele se libertou e em que bastaria um gesto ou uma palavra para que eu pudesse entrar na sua alma e lá ficar para sempre. Mas não tinha sabido encontrar esse momento e agora era tarde: dormia e de novo se afastara de mim.
Quando assim o contemplava, abriu os olhos sem se mexer, com a cara enterrada de perfil na almofada e perguntou-me:
— Também dormiste?
A sua voz pareceu-me mudada, mais confiante e mais próxima. Eu esperava de repente que misteriosamente, durante o sono, a nossa intimidade tivesse aumentado.
— Não… estive a olhar para ti.
Guardou silêncio por um instante, depois disse:
— Tenho um favor a pedir-te… mas posso contar contigo?
— Que pergunta!
— Será preciso que me faças o favor de guardar por alguns dias na tua casa um pacote que te entregarei. Virei buscá-lo e talvez te traga outro.
Noutra ocasião, esta história dos pacotes teria excitado a minha curiosidade. Mas neste momento o que me interessava era ele e as nossas relações. Pensava que era mais uma ocasião para nos tornarmos a ver, que lhe devia agradar o mais que pudesse e que, se lhe fizesse perguntas, poderia arrepender-se e faltar ao prometido.
Respondi-lhe com ar despreocupado:
— Se é só isso o que queres…
Calou-se ainda durante muito tempo. Parecia reflectir. Depois insistiu:
— Então aceitas?
— Já te disse que sim.
— E não te interessa conhecer o conteúdo dos pacotes?
— Se não queres dizer — respondi esforçando-me por parecer desinteressada —, é porque tens razões para isso! Não to pergunto.
— Mas poderia ser alguma coisa perigosa; não sabes?
— Está bem! Tanto pior!
— Podia ser uma coisa roubada — continuou estendendo-se de costas, enquanto os olhos lhe brilhavam com uma expressão divertida e ingênua ao mesmo tempo. — Eu podia ser um ladrão.
Recordei-me de Sonzogne, que não só era ladrão como também assassino, e lembrei-me dos meus próprios roubos: a caixa de pó de arroz e o lenço de seda. Pareceu-me uma curiosa coincidência que ele quisesse passar por ladrão aos olhos de uma pessoa como eu, autêntica ladra, vivendo no meio de ladrões. Fiz-lhe uma carícia e disse-lhe com doçura:
— Não, tu não és um ladrão com certeza.
Irritou-se. O seu amor-próprio, sempre desperto, tomava a mal as coisas mais estranhas e imprevistas.
— Porquê? — disse-me. — Podia muita bem sê-lo.
— Não tens cara disso. Tudo é possível… mas realmente tu não pareces.
— Porquê? Que cara tenho eu?
— Tens cara daquilo que és… um rapaz de boa família, um estudante…
— Fui eu quem te disse que era estudante… Podia muito bem ser outra coisa qualquer… e é a verdade…
Já não o ouvia. Pensava que também eu não tinha cara de ladra e no entanto era uma ladra e desejava imenso dizer-lho. A sua curiosa atitude aumentava a minha tentação. Sempre pensara que roubar era um acto censurável. E eis que alguém não só não parecia censurar um tal acto, mas parecia encontrar nisso um aspecto positivo que para mim continuava misterioso. Hesitei um momento, depois disse-lhe:
— Tens razão. Penso que não és um ladrão porque estou convencida de que não o és; mas, quanto à cara, bem podias sê-lo. Nunca se tem a cara daquilo que se é. Eu, por exemplo… Tenho cara de ladra?
— Não — respondeu sem me olhar.
— E no entanto sou-o — acrescentei tranquilamente.
— Tu és?
— Sou.
— E que roubaste?
Tinha deixado a mala sobre a mesa-de-cabeceira. Peguei nela, tirei a caixa e mostrei-lha.
— Isto, numa casa aonde ia aqui há uns tempos, e, no outro dia, numa loja, um lenço que dei a minha mãe.
Não acreditou que fizesse estas revelações por vaidade. Na realidade, o que me levara a fazê-las fora um desejo de intimidade, de cumplicidade sentimental: à falta de melhor, a confissão de um delito pode aproximar e fazer amar. Vi-o tornar-se grave e olhar-me com ar concentrado, e de repente receei que ele me julgasse mal e tomasse a resolução de não me tornar a ver. Acrescentei depressa:
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