6 Dava a sentença como ilhais cingia.
Ante ele quando uma alma desditada
Vem, seus crimes confessa-lhe em chegando,
9 Com perícia em pecados consumada.
Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando,
Do abismo o círc’lo arbitra, a que pertença,
12 Pelas voltas da cauda graduando.
Sempre muitas se lhe acham na presença;
Cada qual tem sua vez de ser julgada,
15 Diz, ouve, cai, se some sem detença.
Minos, logo me vendo, iroso brada,
Do grave ofício no ato sobrestando:
18 — “Ó tu, que vens das dores à morada;
“Olha como entras e em quem stás fiando:
Não te engane do entrar tanta largueza!”
21 — “Por que falar” — meu guia diz — “gritando?”
“Vedar não tentes a fatal empresa:
Assim se quer lá onde o que se ordena
24 Se cumpre. Assaz te seja esta certeza!”
Eis já começo da infernal geena
A ouvir os lamentos: sou chegado
27 Onde intenso carpir me aviva a pena.
Em lugar de luz mudo tenho entrado:
Rugia, como faz mar combatido
30 Dos ventos, pelo ímpeto encontrado.
Da tormenta o furor, nunca abatido,
Perpetuamente as almas torce, agita,
33 Molesta, em seus embates recrescido.
Quando à borda do abismo as precipita,
Ais, soluços, lamentos vão rompendo.
36 Blasfema a Deus a multidão maldita.
Ouvi que estão no padecer horrendo
Os que aos vícios da carne se entregavam,
39 Razão aos apetites submetendo.
Quais estorninhos, que a voar se travam
Em densos bandos na estação já fria,
42 Em rodopio as almas volteavam,
Ao capricho do vento, que as trazia.
De pausa não, de menos dor a esp’rança
45 Conforto lhes não dá nessa agonia.
Como nos ares longa série avança
De grous, que vão cantado o seu grasnido,
48 Assim no gemer seu, que não descansa,
Traz o tufão as sombras desabrido.
— “Mestre” — disse eu — “quais almas são aquelas
51 Que o vendaval fustiga denegrido?”
— “A primeira” — tornou Virgílio — “entre elas
De quem notícias ter desejarias,
54 Regeu nações, diversas nas loquelas.
“De luxúria fez tantas demasias
Que em lei dispôs ser lícito e agradável
57 Para desculpa às torpes fantasias.
“Semíramis chamou-se: o trono estável
Herdou de Nino e foi a sua esposa.
60 Do Soldão teve a terra memorável.
“A morte deu-se a outra, de amorosa,
Às cinzas de Siqueu traidora e infida;
63 Cleópatra após vem luxuriosa”.
Helena vi, a causa fementida
De tanto mal, e Aquiles celebrado
66 Que teve por amor a extrema lida.
Páris, Tristão e um bando assinalado
De sombras me indicou, nomes dizendo,
69 Que à sepultura amor tinha arrojado.
A compaixão me estava confrangendo,
Dessas damas e antigos cavaleiros
72 Nomes ouvindo e mágoas conhecendo.
Então disse eu: — “Poeta, aos companheiros
Dois, que ali vêm, falar muito desejo:
75 Ao vento ser parecem tão ligeiros!”
“Hás de ter” — me tornou — “asado ensejo,
Quando forem mais perto; então lhes pede
78 Pelo amor que os uniu: virão sem pejo”. —
Quando acercar-se o vento lhes concede
A voz alcei: — “Ó! vinde, almas aflitas,
81 Falar-nos, se alta lei não vo-lo impede”. —
Quais pombas, que saudosas de asas fitas,
Ao doce ninho, em voo despedido,
84 Vão pelo ar, aos desejos seus adstritas:
Tais saíram da turba, em que era Dido,
A nós as duas sombras se inclinando,
87 Tanto as moveu da voz o tom sentido!
— “Entre beni’no, compassivo e brando,
Que nos vem visitar por este ar perso,
90 Tendo nós dado o sangue ao mundo infando,
“Se amigo o Senhor fosse do universo,
Da paz aos rogos nossos, gozarias,
93 Pois te enternece o nosso mal perverso.
“Enquanto o vento é quedo, o que dirias
Havemos nós de ouvir atentamente;
96 Diremos quanto ouvir desejarias.
“Onde, a paz desejando, o Pado ingente
Com seus vassalos para o mar descende,
99 A terra, em que hei nascido, está jacente.
“Amor, que os corações súbito prende,
Este inflamou por minha formosura,
102 Que roubaram-me: o modo inda me ofende.
“Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
105 Que, bem o vês, eterno me perdura.
“Amor nos igualou da morte o efeito:
A quem no-la causou, Caína, esperas”.
108 Após tais vozes foi silêncio feito.
Daquelas almas as angústias feras
Em meditar amargo a fronte inclino
111 Té que o Mestre exclamou: “Que consideras?”
Quando pude, falei: “Cruel destino!
Que doce cogitar! Que meigo encanto,
114 Precederam do par o fim maligno!” —
Aos dois voltei-me e disse-lhes, entanto:
“Teus martírios, Francesca, me angustiam,
117 Movem-me o triste, compassivo pranto.
“Quando os doces suspiros só se ouviam,
Como, em que Amor mostrar-vos há querido
120 Os desejos, que ainda se escondiam?” —
— “Não há” — disse — “tormento mais dorido
Que recordar o tempo venturoso
123 Na desgraça. Teu Mestre o tem sentido.
“Mas porque de saber és desejoso,
Como nasceu a flor do nosso afeto,
126 Direi chorando o lance lastimoso.
“Por passatempo eu lia e o meu dileto
De Lanceloto extremos namorados;
129 Éramos sós, de coração quieto.
“Nossos olhos, por vezes encontrados,
Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.
132 Um ponto só deu causa aos nossos fados.
“Ao lermos que nos lábios osculara
O desejado riso, o heroico amante,
135 Este, que mais de mim se não separa,
“A boca me beijou todo tremante,
De Galeotto fez o autor e o escrito.
138 Em ler não fomos nesse dia avante”.
Enquanto a história triste um tinha dito,
Tanto carpia o outro, que eu, absorto
Em piedade, senti letal conflito,
142 E tombei, como tomba corpo morto.
4. Minos , rei de Creta e que na mitologia pagã era juiz do Inferno. — 58. Semíramis , rainha de Babilônia, viúva do rei Nino. — 61. Dido , rainha de Cartago, que amou a Enéias. — 63. Cleópatra , rainha do Egito. — 64. Helena , mulher de Menelau, rei de Esparta que causou a guerra de Troia. — 67. Páris e Tristão , cavaleiros dos romances medievais. — 73. Companheiros dois , Francesca de Rimini e Paulo Malatesta, que foram mortos por Gianciotto Malatesta, marido de Francesca e irmão de Paulo, por eles terem ficado apaixonados um pelo outro.
No terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco, florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum.
DO soçobro tornando a aflita mente,
Que da cópia infelice contristado
3 Havia tanto o padecer pungente,
Achei-me novamente circundado
De outros míseros, de outras amarguras,
6 Que via em toda parte, ao longe e ao lado.
Sou no terceiro círculo, onde escuras,
Eternas chuvas, gélidas caíam,
9 Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.
Saraiva grossa, neve, água desciam
Desse ar pelas alturas tenebrosas:
12 No chão caindo infeto odor faziam.
Latia com três fauces temerosas,
Cérbero, o cão multíface e furente,
15 Contra as turbas submersas, criminosas.
Sanguíneos olhos tem, o ventre ingente,
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