O Poeta então disse-me enfiando —
15 “Eu descerei primeiro, tu segundo”. —
Tornei-lhe, a palidez sua notando:
“Como hei-de ir, se és de espanto dominado,
18 Quando conforto estou de ti sperando?” —
“Dos que lá são o angustioso estado
Causa a que vês no rosto meu impressa,
21 Piedade, medo não, como hás cuidado.
“Vamos: longa a jornada exige pressa”.
Entrou, e eu logo, o círculo primeiro
24 Em que o abismo a estreitar-se já começa,
Escutei: não mais pranto lastimeiro
Ouvi; suspiros só, que murmuravam,
27 Vibrando do ar eterno o espaço inteiro.
Pesares sem martírio os motivavam
De varões e de infantes, de mulheres
30 Nas multidões, que ali se apinhoavam.
“Conhecer” — meu bom Mestre diz — “não queres
Quais são os que assim vês ora sofrendo?
33 Antes de avante andar convém saberes
“Que não pecaram: boas obras tendo
Acham-se aqui; faltou-lhes o batismo,
36 Portal da fé, em que és ditoso crendo.
“Na vida antecedendo o Cristianismo,
Devido culto a Deus nunca prestaram:
39 Também sou dos que penam neste abismo.
“Por tal defeito — os mais nos não mancharam —
Perdemo-nos: a pena é desesp’rança,
42 Desejos, que para sempre se frustaram”.
Ouvi-lo, em dor o coração me lança,
Pois muitos conheci de alta valia,
45 A quem do Limbo a suspenção alcança.
“Ó Mestre! Ó meu Senhor! diz-me — inquiria,
Para ter da certeza o firme esteio
48 À fé, que os erros todos desafia,
“Por seu merecimento ou pelo alheio
Daqui alguém ao céu já tem subido?”
51 Da mente minha ao alvo o Mestre veio,
E falou-me: “Des’pouco aqui trazido,
Descer súbito vi forte guerreiro;
54 De triunfal coroa era cingido.
“Almas levou — do nosso pai primeiro,
Abel, Noé, Moisés, que legislara,
57 Abraam, na fé, na obediência inteiro,
“Davi, que sobre o povo hebreu reinara,
Israel com seu pai e a prole basta,
60 E Raquel, por quem tanto se afanara.
“Para a glória outros muitos mais afasta
Do Limbo; e sabe tu que antes não fora
63 Salvo quem pertencera à humana casta”.
Andávamos, enquanto isto memora,
Sem parar, pela selva penetrando,
66 Selva de almas, que aumenta de hora em hora,
E da entrada não longe ainda estando,
Eis um clarão brilhante divisamos
69 Das trevas o hemisfério alumiando.
Dali distantes ainda nos achamos
Não tanto, que eu não discernisse em parte
72 Que à sede de almas nobres caminhamos.
“Ó tu, que és honra da ciência e da arte,
Quem são” — disse — “os que, aos outros preferidos,
75 Privilégio tamanho assim disparte?”
Falou Virgílio: “— Assim são distinguidos
Do céu, que atende à fama alta e preclara,
78 Com que foram na terra engrandecidos”.
Eis voz escuto sonorosa e clara:
“Honrai todos o altíssimo poeta!
81A sombra sua torna, que ausentara”.
Quatro sombras notei, quando aquieta
O rumor, que a nós vinham: nos semblantes
84 Nem prazer, nem tristeza se interpreta.
E disse o Mestre, após alguns instantes:
“Aquele vê, que, qual monarca ufano,
87 Empunha espada e os três deixa distantes.
É Homero, o poeta soberano;
O satírico Horácio é o outro, e ao lado
90 Ovídio, em lugar último Lucano.
Como lhes cabe o nome assinalado
Que soou nessa voz há pouco ouvida,
93 Me honrando, honrosa ação têm praticado”.
A bela escola assim vi reunida
Do Mestre egrégio do sublime canto,
96 Águia em seu voo além dos mais erguida.
Discursado entre si tendo algum tanto,
A mim volveram gracioso o gesto:
99 Sorriu Virgílio, dessa mostra ao encanto.
Mais foi-me alto conceito manifesto,
Quando acolher-me ao grêmio seu quiseram,
102 Entre eles me cabendo o lugar sexto.
Té o clarão comigo se moveram,
Prática havendo, que omitir é belo,
105 Sublime no lugar, onde a teceram.
Chegamos junto a um fúlgido castelo
Sete vezes de muro alto cercado:
108 Cinge-o ribeiro lindo, mas singelo.
Passei-o a pé enxuto; acompanhado
Entrei por sete portas, caminhando
111 De fresca relva até ameno prado.
Graves, pausados olhos meneando
Stavam sombras de aspecto majestoso,
114 Com voz suave rara vez falando.
A um lado, sobre viso luminoso
Subimo-nos: de lá se divisava
117 Dessas almas o bando numeroso.
No verde esmalte o Mestre me indicava
Egrégias sombras: inda me extasia
120 O prazer com que vê-los exultava.
Eletra vi de heróis na companhia,
Enéias com Heitor e guarnecido
123 Grifanhos olhos César nos volvia.
Pentesiléia vi e o rosto ardido
De Camila, e sentado o rei Latino
126 Junto a Lavinia estava enternecido.
Notei Márcia, Lucrécia e o que Tarquino
Lançou, Cornélia e Júlia; retirado
129 De todos demorava Saladino.
Alçando os olhos, de respeito entrado,
O Mestre vejo dos que mais se acimam
132 Em saber, de filósofos cercado.
Todos com honra e acatamento o estimam.
Aqui Platão e Sócrates estavam,
135 Que na grandeza mais se lhe aproximam.
Demócrito, o atomista, acompanhavam
Tales, Zeno, Heráclito e Anaxagora.
138 Empédocle e Diógenes falavam,
Dióscoris, o que a natura outrora
Sábio estudara, Orfeu, Túlio eloquente,
141 Sêneca, o douto, que a moral explora,
Lívio, Euclides, Hipócrates ingente,
Ptolomeu, Galeno e o Avicena;
144 Averróis, nos comentos sapiente.
Resenha não me é dado fazer plena
De todos; longo o assunto está-me urgindo,
147 E a ser omisso muita vez condena.
A companhia então se dividindo,
Comigo o Mestre outra vereda trilha,
Do ar sereno ao ar, que treme, vindo:
151 Chegados somos onde luz não brilha.
95. Mestre egrégio etc., Homero, príncipe da poesia épica. — 121. Eletra , mãe de Dardano, fundador de Troia. — 122. Enéias , príncipe troiano, filho de Anquise e de Vênus. — Heitor , filho de Príamo, rei de Troia. — 124. Pentesiléia , rainha das Amazonas, morta por Aquiles. 125. — Camila , filha de Metabo, rei latino. — O rei Latino , rei dos aborígenes, pai de Lavínia, que foi mulher de Enéias. — 127. Márcia , mulher de Catão Uticense. — Lucrécia , mulher de Colatino que, ao ser violada por Sesto Tarquínio, se matou. — 128. — Cornélia , mãe dos Gracos. — Júlia , filha de César e mulher de Pompeu. — 129. Saladino , sultão do Egito e da Síria, que conquistou Jerusalém. — 131. O mestre etc., Aristóteles. — 140. — Orfeu de Trácia, poeta e músico. — Túlio , eloquente, Marco Túlio Cícero. — 143. Ptolomeu , o autor do sistema do mundo que se chamou sistema ptolemaico. — Galeno e Avicena , famosos médicos, o primeiro de Pérgamo, no Ponto, o segundo árabe.
No ingresso do segundo circulo está Minos, que julga as almas e designa-lhes a pena. No repleno desse círculo estão os luxuriosos, que são continuamente arrebatados e atormentados por um horrível turbilhão. Aqui Dante encontra Francesca de Rimini, que lhe narra a história do seu amor infeliz.
DESCI desta arte ao círculo segundo,
Que o espaço menos largo compreendia,
3 Onde o pungir da dor é mais profundo.
Lá stava Minos e feroz rangia:
Examinava as culpas desde a entrada,
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