— Você sabia de tudo isso quando tomei minha decisão? — perguntou Trevize.
— Um certo tempo antes, senhor — respondeu Daneel. — Gaia, naturalmente, não sabia.
— Então com que objetivo levou a trama até o fim? — perguntou Trevize, zangado. — De que adiantou? Desde que tomei a decisão, estou vasculhando a Galáxia à procura da Terra e do que considerava como o seu “segredo”... sem saber que o segredo era você... na esperança de confirmar a minha decisão. Pois ela está confirmada. Agora sei que a Galáxia Viva é absolutamente essencial... só que isso não serve para nada. Por que não deixou a Galáxia entregue a si própria... e eu aos meus afazeres?
— Porque, senhor, ainda tinha esperanças de encontrar uma saída. E acho que encontrei. Ao invés de substituir o meu cérebro por outro cérebro positrônico, o que seria impraticável, poderia fundi-lo com um cérebro humano, um cérebro humano que não esteja sujeito às Três Leis e que por isso me permita maior liberdade de ação. Foi para isso que os trouxe aqui.
Trevize parecia horrorizado.
— Quer dizer que você planeja fundir um cérebro humano com o seu? Fazer com que um homem perca a sua individualidade para que você não morra?
— Sim senhor. Isso não me tornaria imortal, mas me daria tempo suficiente para implantar a Galáxia Viva.
— E você me trouxe aqui para isso? Quer que minha independência em relação às Três Leis e o meu bom senso se tornem parte de você? Pois a resposta é não!
— O senhor mesmo acabou de dizer que a Galáxia Viva é essencial para o bem-estar da Humanidade...
— Sim, mas estava imaginando que a Galáxia Viva levaria muito tempo para se tornar realidade, que até lá eu estaria morto e enterrado como um indivíduo independente. Por outro lado, se a Galáxia Viva fosse estabelecida rapidamente, todos perderiam a individualidade e eu não teria muito que lamentar. O que me recuso terminantemente é a abrir mão da minha individualidade enquanto o resto da Galáxia conserva a sua.
— Então é exatamente como eu pensava — disse Daneel. — O senhor não concorda com a fusão e, de qualquer forma, seu cérebro pode ser mais bem aproveitado como unidade independente.
— Quando foi que mudou de ideia? Você disse que me trouxe aqui para fundir o seu cérebro com o meu!
— O senhor talvez não tenha notado, mas usei a frase no plural: “Foi para isso que os trouxe aqui.”
Pelorat se remexeu no assento.
— Diga-me, Daneel, um cérebro humano que se fundisse com o seu compartilharia todas as suas memórias... todas as memórias dos últimos vinte mil anos?
— Sim senhor.
Pelorat respirou fundo.
— Isso para mim seria a realização suprema da minha carreira de pesquisador. Para conseguir isso, abriria mão de minha individualidade de muito bom grado. Por favor, conceda-me o privilégio de compartilhar do seu cérebro.
— E Bliss? — lembrou Trevize. — O que será de Bliss? Pelorat hesitou apenas por um momento.
— Bliss vai entender. De qualquer forma, ela estará melhor sem mim...
Daneel sacudiu a cabeça.
— Sua oferta é generosa, Dr. Pelorat, mas não posso aceitá-la. Seu cérebro é antigo e não sobreviverá por mais que duas ou três décadas, mesmo depois de fundir-se com o meu. Preciso de um cérebro mais jovem... Vejam! Ela está de volta!
Bliss estava chegando do passeio, com passos saltitantes e uma expressão de felicidade no rosto. Pelorat levantou-se, alarmado.
— Bliss! Oh, não!
— Não se preocupe, Dr. Pelorat — disse Daneel. — Não posso usar Bliss. Bliss é Gaia e, como expliquei, não devo fundir-me com Gaia.
— Nesse caso — disse Pelorat — quem...
Trevize, olhando para a figurinha que acompanhava Bliss, explicou:
— Era Fallom que o robô queria o tempo todo, Janov.
Bliss chegou sorridente. Parecia estar de muito bom humor.
— Não pudemos sair da propriedade — disse —, mas achei isso aqui tão parecido com Solaria! Fallom, naturalmente, está convencida de que estamos em Solaria. Perguntei-lhe se não achava Daneel um pouco diferente de Jemby... afinal, Jemby era metálico... e Fallom respondeu “Não, no fundo, não”. Não faço ideia do que ela quis dizer com “no fundo”.
A moça olhou para Fallom, que estava a uma certa distância, tocando a flauta para Daneel, que balançava a cabeça no ritmo da música. Era uma linda melodia.
— Vocês sabiam que Fallom tinha trazido a flauta? — perguntou Bliss. — Acho que tão cedo não vamos conseguir tirá-la de perto de Daneel...
O comentário foi recebido com um silêncio pesado e Bliss olhou para os dois, assustada. ...
— Que foi que houve?
Trevize fez um gesto na direção de Pelorat. Era melhor que ele explicasse a Bliss, o gesto parecia dizer. Pelorat pigarreou e disse:
— Na verdade, Bliss, acho que Fallom vai ficar permanentemente com Daneel.
— É mesmo?
Bliss franziu a testa e fez menção de aproximar-se de Daneel, mas Pelorat segurou-a pelo braço.
— Bliss querida, é melhor não se meter. Esse robô é mais poderoso do que Gaia, e além disso, para que a Galáxia Viva se torne realidade, vai precisar da ajuda de Fallom. Deixe-me explicar... Golan, por favor, corrija-me se achar que estou distorcendo os fatos.
Bliss escutou o relato com uma expressão cada vez mais triste.
Trevize tentou consolá-la:
— Você pode ver que é a solução mais lógica, Bliss. A criança é uma Espacial e Daneel foi projetado e construído por Espaciais. A criança foi criada por um robô em uma propriedade não muito diferente desta aqui. Fallom tem poderes que poderão ser muito úteis para Daneel e viverá mais uns três ou quatro séculos, tempo que pode ser necessário para a consolidação da Galáxia Viva.
Bliss disse, com o rosto vermelho e os olhos úmidos:
— Acho que o robô nos fez passar em Solaria antes de virmos para cá porque precisava da criança.
Trevize deu de ombros.
— Ele pode estar simplesmente aproveitando a oportunidade. Não acho que tenha poderes suficientes no momento para controlar nossas ações através do hiperespaço.
— Não! Foi de propósito! Ele me fez sentir uma atração especial pela criança para que eu a trouxesse comigo, em vez de deixá-la em Solaria para ser morta; para que eu a protegesse de você, que sempre implicou com Fallom e teria se livrado dela na primeira oportunidade.
— Como sabe que isso é verdade? A afeição que você sente pela criança pode muito bem ser genuína, e permitir que os solarianos a matassem não estaria de acordo com o código de ética dos gaianos, mesmo sem a intervenção de Daneel. Pense, Bliss, você não tem nada a ganhar. Suponha que o robô a deixasse partir com Fallom; para onde a levaria? De volta para Solaria, onde seria certamente executada; para algum mundo cheio de gente, onde não teria um momento de paz; para Gaia, onde morreria de saudade de Jemby; ou em uma viagem sem fim pela Galáxia, na qual ela confundiria com Solaria todo planeta novo que encontrássemos? E onde você encontraria um cérebro para fundir-se com o de Daneel, o que é indispensável se queremos que a Galáxia Viva se torne uma realidade?
Bliss ficou calada.
Pelorat estendeu timidamente a mão para a moça.
— Bliss, ofereci meu cérebro a Daneel. Ele recusou, alegando que eu era muito velho. Gostaria que tivesse aceitado, pois assim estaria salvando Fallom para você.
Bliss segurou-lhe a mão e beijou-a.
— Obrigado, Pel, mas o preço teria sido alto demais, mesmo que fosse para que eu pudesse ficar com Fallom. — A moça respirou fundo e tentou sorrir. — Talvez, quando voltarmos a Gaia, eu possa ter um filho... e certamente colocarei Fallom entre as sílabas do seu nome.
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