Em geral, é claro, ela já era cheia de magia mesmo, mas se tratava de magia velha e tranqüila, tão estimulante e perigosa quanto um par de chinelos. Agora, atravessando esse tecido antigo havia uma nova magia, aguçada e vibrante, clara e fria como fogo de cometa. Ela transpunha as pedras e estalava nas arestas feito eletricidade estática no tapete de nylon da Criação. Zumbia e chiava. Enrolava a barba dos magos e brotava, em fiapos de fumaça octarina, de dedos que havia três décadas não tinham feito nada mais místico do que uma pequena ilusão passageira. Como descrever o resultado com gosto e delicadeza? Para a maioria dos magos, era como ser o homem de idade avançada que, subitamente confrontado com uma jovem bonita, descobre, entre o espanto, o deleite e a perplexidade, que a carne, subitamente, está tão bem-disposta quanto o espírito.
E nos corredores da Universidade a palavra se fazia ouvir, sussurrada: Fonticeria!
Sorrateiramente, alguns magos tentaram feitiços que havia anos não conseguiam realizar e, espantados, observaram sua execução perfeita. A princípio, com timidez; depois, com confiança; e, então, com gritos e clamores, lançavam bolas de fogo uns nos outros, tiravam pombos dos chapéus ou faziam purpurinas multicoloridas caírem do céu.
Fonticeria! Um ou dois magos, homens nobres que até então não haviam praticado nada mais censurável do que comer ostras vivas, ficaram invisíveis e puseram-se a perseguir empregadas corredor afora.
Fonticeria! Algumas almas corajosas haviam experimentado antigos feitiços de vôo e agora pairavam vacilantes entre os caibros. Fonticeria!
Apenas o bibliotecário não tomou o café da manhã. Observou as caretas durante algum tempo, franzindo os lábios preensores, e, então, retirou-se em direção à biblioteca. Se alguém estivesse preocupado em dispensar alguma atenção, teria ouvido o ruído de porta se trancando.
Fazia silêncio na biblioteca. Os livros já não estavam mais agitados. Haviam passado do medo às águas calmas do terror absoluto e encontravam-se dispostos nas prateleiras como coelhos hipnotizados.
Um braço comprido e peludo se estendeu e pegou o Diccionário Completto de Maghia com Preceittos para os Sábios, de Casplock. Antes que o livro conseguisse se afastar, tranqüilizou-o com a mão de dedos longos e abriu-o na letra F. O bibliotecário acalmou a página estremecida e correu a unha dura pelos verbetes até chegar a:
Fonticeiro. S.m. (mittico). Protomagho, canal por onde a maghia nova pode entrar no mundo, magho que não é limitado pelas cappacidades físicas do corpo, pelo Desttino ou pela Mortte. Está escrito que havia fonticeiros nos primórdios do mundho, mas não pode haver hoje. E que assim seja, porque a fonticeria não se desttina aos homens. Portanto, a voltta da fonticeria seria o Fim do Mundo…Se o Criaddor quisesse que o homem fosse igual aos deuses, teria lhe dado asas. CONSULTE TAMBÉM: Apocralipse, Lenda dos Gighantes do Gelo e Hora do Chá dos Deuses.
O bibliotecário leu os verbetes sugeridos, voltou ao primeiro e fitou-o, com olhos sombrios, durante algum tempo. Devolveu cuidadosamente o livro à estante, arrastou-se para debaixo da mesa e cobriu a cabeça com o cobertor.
Mas, na tribuna dos trovadores do salão principal, Carding e Lingote observavam a cena com sentimentos totalmente diversos. Parados lado a lado, os dois pareciam formar o número 10.
— O que está acontecendo? — perguntou Lingote. Ele não havia dormido à noite e não vinha conseguindo pensar direito.
— A magia está fluindo para dentro da Universidade — explicou Carding. — Fonticeiro é isso. Um canal para a magia. Magia de verdade, meu filho. Não o troço antigo e enfraquecido de que vínhamos nos valendo nos últimos séculos. Esse é o alvorecer de uma… de uma…
— Nova, hum, aurora?
— Exatamente. Um tempo de milagres, um… um…
— Ânus mirabilis?
Carding franziu a testa.
— É — disse, afinal. — Algo assim, imagino. Você é bom com as palavras, sabia?
— Obrigado, irmão.
O mago sênior pareceu ignorar o grau de intimidade. Deu meia-volta e apoiou-se na cerca talhada, assistindo às exibições mágicas. As mãos automaticamente dirigiram-se ao bolso, em busca do saco de tabaco, e depois pararam. Ele sorriu e estalou os dedos. Um cigarro aceso surgiu em sua boca.
— Há anos não conseguia fazer isso — comentou. — Grandes mudanças, meu filho. Eles ainda não se deram conta, mas é o fim das ordens e dos níveis. Isso tudo não passava de um… sistema de racionamento. Não há mais necessidade. Onde está o garoto?
— Na cama… — começou Lingote.
— Estou aqui — disse Coin.
Ele estava parado sob o arco que levava aos aposentos do mago sênior, segurando a vara de octirona que tinha o dobro de seu tamanho. Pequenos veios de fogo amarelo cintilavam em sua superfície negra e fosca, escura a ponto de parecer uma fenda no mundo.
Lingote sentiu os olhos dourados atravessarem-no, como se seus pensamentos mais íntimos viessem se desenrolando no fundo do cérebro.
— Ah — o soltou, numa voz que acreditava alegre e afetuosa, mas que, de fato, parecia o estertor da morte. Depois de um começo desses, sua contribuição só poderia piorar, e foi o que aconteceu: — Estou vendo que você, hum, levantou — disse.
— Meu filho — animou-se Carding.
Coin dirigiu-lhe um olhar frio e demorado.
— Vi você ontem à noite — notou o menino. — É poderoso?
— Só um pouco — respondeu Carding, lembrando rapidamente a tendência que o menino tinha de tratar magia como queda-de-braço. — Mas não tão poderoso quanto você.
— Preciso ser arqui-reitor, como é o meu destino.
— Ah, claro — confirmou Carding. — Sem dúvida. Posso dar uma olhada na vara? Que desenho interessante…
Ele estendeu a mão rechonchuda.
Era uma tremenda falta de educação. Nenhum mago jamais pensaria em tocar o bastão de outro mago sem permissão manifesta. Mas tem gente que não acredita que criança seja completamente humana e acha que bons modos não se aplicam a ela.
Os dedos de Carding fecharam-se na vara negra.
Houve um barulho, que Lingote mais sentiu do que ouviu. Carding saiu quicando pela galeria e bateu na parede oposta, com um ruído de saco de banha de porco caindo no chão.
— Não faça isso — pediu Coin.
O menino deu meia-volta, encarou Lingote, que estava pálido, e acrescentou:
— Vá ajudá-lo. Ele não deve ter se machucado muito.
O tesoureiro cruzou a galeria e inclinou-se para Carding, que respirava com dificuldade e exibia uma coloração estranha. Bateu na mão inerte até que o mago sênior abrisse um dos olhos.
— Viu o que aconteceu? — cochichou.
— Não tenho certeza. Hum. O que aconteceu? — sussurrou Lingote.
— Ela me mordeu.
— Na próxima vez que tocar a vara — falou Coin, distraído —, você morre. Entendido?
Carding levantou a cabeça devagar, para impedir que algum pedaço caísse.
— Entendido — respondeu.
— E, agora, eu gostaria de conhecer a Universidade — anunciou o garoto. — Já ouvi falar muito a respeito…
Lingote ajudou Carding a se levantar e escorou o colega ao avançarem, obedientemente, atrás do menino.
— Não toque na vara — advertiu Carding.
— Vou me lembrar, hum, disso — garantiu Lingote. — Qual é a sensação?
— Já foi mordido por víbora?
— Não.
— Então vai saber exatamente a sensação.
— Hummm?
— Não parecia nem um pouco mordida de cobra.
Eles seguiram o vulto determinado de Coin, que desceu os degraus da escada e atravessou o destruído vão de porta do salão principal.
Lingote adiantou-se, ansioso por causar boa impressão.
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