— MUITO SENSATO. POR EXEMPLO, VÁRIAS MOÇAS SE JOGAM NOS BRAÇOS DO PRIMEIRO RAPAZ A ACORDÁ-LAS DEPOIS DE DORMIREM CEM ANOS.
— E achamos que, levando tudo em conta, quando eu realmente conheci Ysabell, bem...
— É, E, ENTENDO. UMA DECISÁO EXCELENTE. SÓ QUE RESOLVI NÃO ME METER MAIS NOS ASSUNTOS HUMANOS.
— Jura?
— A NÃO SER OFICIALMENTE. É CLARO. ESTAVA COMPROMETEN-DO MINHA CAPACIDADE CRITICA.
Com o canto dos olhos, Mortimer viu uma das mãos esqueléticas espetar com maestria um ovo recheado. O garoto se virou.
— O que aconteceu? — perguntou. — Eu preciso saber! Uma hora a gente estava na sala de ampulhetas, na outra estava num campo próximo a cidade, e éramos realmente nós! Quer dizer, a realidade havia se transformado para nos receber. Quem fez isso?
— TROQUEI UMA PALAVRINHA COM OS DEUSES.
Morte pareceu constrangido.
— Ah. Trocou, é? — indagou Mort. Morte desviou o olhar.
— É.
— Imagino que eles não tenham ficado muito satisfeitos.
— OS DEUSESB SÃO JUSTOS, E SENTIMENTAIS. EU MESMO NÃO CONSEGUI NUNCA SER ESSAS COISAS... MAS VOCÊ AINDA NÃO ESTÁ LIVRE. PRECISA FAZER A HISTÓRIA ACONTECER.
— Eu sei — disse Mort. — Unir os reinos e tal.
— VAI ACABAR DESEJANDO TER FICADO COMIGO.
— Aprendi muito com o senhor — admitiu Mort.
Levou a mão ao rosto e distraidamente alisou as quatro cicatrizes finas na bochecha.
— Mas acho que não fui feito para esse tipo de trabalho. Olhe, eu realmente sinto muito...
— TENHO UM PRESENTE PARA VOCÊ.
Morte baixou o prato de petiscos e vasculhou os misteriosos recantos do manto. Quando a mão esquelética surgiu, segurava um pequeno globo entre o polegar e o indicador.
O objeto tinha cerca de oito centímetros de diâmetro. Poderia ser a maior pérola do mundo, exceto pelo fato de que a superfície parecia um redemoinho de intrincados traços prateados eternamente a ponto de se transformar em algo reconhecível, mas sempre conseguindo se safar.
Quando Morte depositou-a na palma estendida de Mortimer, pareceu ao rapaz muito pesada e um pouco quente.
— PARA VOCÊ E SUA MULHER. UM PRESENTE DE CASAMENTO. UM DOTE.
— É lindo! A gente achou que a torradeira fosse presente seu.
— ERA DO ALBERT. ELE NÃO TEM MUITA IMAGINAÇÃO.
Mortimer revirou o globo nas mãos. Os traços internos reagiam ao toque, enviando pequenos raios de luz através da superfície, em direção aos dedos.
— É uma pérola? — perguntou.
— É. QUANDO ALGUMA COISA IRRITA A OSTRA E NÃO PODE SER REMOVIDA, A COITADA A COBRE DE MUCO E A TRANSFORMA EM PÉROLA. ESSA É UMA PÉROLA DIFERENTE. UMA PÉROLA DA REALIDADE. TODA ESSA PARTE BRILHANTE É REALIDADE CONGELADA. VOCÊ DEVERIA RECONHECER... AFINAL, FOI QUEM A CRIOU.
Mortimer começou a jogá-la de uma mão para a outra.
— Vamos guardar junto às jóias do castelo — disse. — Não temos muitas.
— UM DIA VAI SER O GERME DE UM NOVO UNIVERSO.
Mortimer errou a mão, mas, com reflexo apurado, estendeu o braço e pegou-a antes que caísse no chão.
— O quê?
— A PRESSÃO DA NOSSA REALIDADE A MANTÉM CONDENSADA. PODE CHEGAR O DIA EM QUE O UNIVERSO ACABE E A REALIDADE SE ESVAIA. ENTÃO ESSA AQUI VAI EXPLODIR E... QUEM SABE? GUARDE COM CUIDADO. ALÉM DE PRESENTE, É UM FUTURO.
Morte inclinou a caveira.
— É UMA COISINHA A TOA — acrescentou. — VOCÊ PODERIA TER A ETERNIDADE.
— Eu sei — respondeu Mort. — Tive muita sorte.
Com cuidado, deixou-a sobre a mesa do bufê, entre os ovos de codorna e os enroladinhos de salsicha.
— TEM MAIS UMA COISA — lembrou-se Morte. Novamente enfiou a mão sob o manto e desencavou um pacote retangular, mal embrulhado e amarrado com barbante.
— É PARA VOCÊ — disse. — NUNCA DEMONSTROU NENHUM INTERESSE. ACHOU QUE NÃO EXISTISSE?
Mortimer desembrulhou o pacote e se deu conta de ter em mão um pequeno livro de couro. Na lombada, em ouro, estava gravada uma única palavra: Mort.
Ele folheou o volume de trás para a frente, das páginas em branco até o pequeno fluxo de tinta, a avançar pacientemente pela folha, e leu: Mortimer fechou o livro com um estalido, que, no silêncio absoluto, pareceu o estouro da criação, e sorriu, apreensivo.
— Ainda tem muitas páginas para serem preenchidas — disse ele. — Quanta areia ainda me resta? Ysabell falou que, como o senhor virou a ampulheta de cabeça para baixo, significa que vou morrer quando estiver com...
— VOCÊ TEM AREIA SUFICIENTE — cortou Morte. — A MATEMÁTICA NÃO É TUDO O QUE DIZEM.
— Que tal se o convidássemos para os batizados?
— Acho melhor não. Não fui bom pai que dirá avô. Não tenho muito jeito para a coisa.
Largou a taça de vinho e curvou a cabeça para Mort.
— Saudações à sua senhora — disse. — Agora preciso ir.
— Tem certeza? Eu gostaria que o senhor ficasse.
— É MUITA GENTILEZA SUA DIZER ISSO, MAS O SERVIÇO ME CHAMA.
Ele estendeu a mão de osso.
— Sabe como é.
Mort apertou a mão, ignorando o frio.
— Olhe — Falou. — Se quiser tirar uns dias de folga, se estiver precisando de umas férias...
— MUITO OBRIGADO PELA OFERTA — agradeceu Morte. — VOU PENSAR NO ASSUNTO. E AGORA...
— Adeus — disse Mort, e se surpreendeu ao descobrir um aperto na garganta. — É uma palavra horrível, não é?
— É, SIM.
Morte sorriu, porque, como muitas vezes já foi mencionado, não tinha alternativa. Mas possivelmente desta vez fora intencional.
— EU PREFIRO AU REVOIR — disse ele.
FIM
Quase tudo se locomove com maior rapidez do que a luz do Disco, que, ao contrário da luz comum, é tranqüila e vagarosa. De acordo com o filósofo Yin Gha No, a única coisa mais veloz do que a luz comum é a monarquia. Ele raciocinou assim: não podemos ter mais de um rei, e a tradição exige que não haja nenhum intervalo entre dois reis, de modo que, quando um rei morre, o trono deve instantaneamente passar para o herdeiro. É de se presumir, disse ele, que exista alguma partícula elementar — rêions ou talvez rainhons — que realize essa função, mas é claro que às vezes a sucessão não acontece, se defrontada com uma antipartícula, ou repúblicon. O ambicioso plano do filósofo de usar a descoberta para enviar mensagens — recorrendo à cuidadosa tortura de um rei, a fim de modular os sinais — nunca chegou a ser completamente explicado, porque a essa altura o bar fechou.
A primeira pizza do Disco foi criada pelo místico klatchiano Ronron “Revelação Joe” Shuwadhi, que alegava ter aprendido a receita em sonho com o próprio Criador do Discworld — que aparentemente afirmara ser isso o que sempre tivera em mente. Os viajantes que atravessaram o deserto e viram o original, milagrosamente conservado na Cidade Proibida de Ee, dizem que na ocasião o objetivo do Criador fora uma pizza pequena de queijo e peperone com azeitonas pretas [10] Depois da dissidência da Facção do Sentido Horário e da morte de 25 mil pessoas no jihad decorrente, os fiéis puderam acrescentar à receita uma pequena folha de louro.
, e coisas como mares e montanhas foram acrescentadas no calor da última hora, como sempre acontece.
Mas não o bigode arqueado nem o chapéu redondo de pele. E seguia por três horas. A realidade, que em geral não pode arcar com os custos dos poetas, sugere que na verdade o discurso inteiro tenha sido o seguinte: “Rapazes, a maioria deles ainda está na cama, vamos atacar feito cólica, já estou de saco cheio de dormir em tenda, tudo bem?”.
Читать дальше