Pituco pousou com suavidade e trotou pela crosta gelada sem afundar. Evidentemente, não deixou pegadas.
Mortimer desceu do cavalo e caminhou até a porta, murmurando para si mesmo e traçando no ar curvas experimentais com a foice.
O telhado do chalé fora construído com beirais largos, para escoar a neve e cobrir as pilhas de lenha. Nenhum morador das altas Ramtops sonharia em começar o inverno sem pilhas de lenha amontoadas em volta da casa. Mas ali não havia lenha, muito embora ainda faltasse bastante tempo para a primavera.
Havia, no entanto, um rolo de feno numa rede próxima à porta. E um bilhete, escrito em maiúsculas grandes e ligeiramente tremidas: PARA O CAVALO.
Aquilo teria deixado Mortimer preocupado, caso ele se permitisse. Alguém o esperava. Mas nos últimos dias ele vinha aprendendo que melhor do que afundar na incerteza era surfar na superfície. Seja como for, Pituco não estava preocupado com escrúpulos morais e abocanhou a banquete.
Havia a dúvida de bater à porta ou não. Por alguma razão, não parecia apropriado. E se ninguém respondesse, ou o mandassem embora?
Então ele abriu o trinco e empurrou a porta. A madeira se abriu sem ranger.
Havia uma cozinha de teto baixo, com vigas a uma altura complicada para Mortimer. A luz da vela solitária iluminava a louça de barro sobre o aparador e o chão, que tinha sido esfregado e encerado à iridescência. O fogo na lareira não aumentava a claridade, porque não passava de um montinho de cinza branca sob os restos da lenha. Sem que lhe dissessem, Mortimer sabia que se tratava do último pedaço de lenha.
Uma senhora estava sentada à mesa da cozinha, escrevendo furiosamente, com o nariz adunco a poucos centímetros do papel. Um gato cinza se enroscou sobre a mesa, ao lado dela, e piscou com calma para Mortimer.
A foice bateu numa viga. A mulher ergueu a cabeça.
— Só um minutinho — disse, franzindo a testa para o papel. — Ainda não terminei aquela parte de estar em perfeita condição de saúde física e mental, uma porção de besteira mesmo, ninguém em perfeita condição de saúde física e mental estaria morto. Aceita uma bebida?
— O quê? — perguntou Mort. Ele se recompôs e repetiu:
— O QUÊ?
— Se é que você bebe. Vinho de framboesa. No aparador. Pode acabar com a garrafa.
Desconfiado, Mortimer fitou o móvel. Parecia estar perdendo o controle das coisas. Sacou a ampulheta e olhou o vidro. Restava um pouco de areia.
— Ainda tem uns minutos — avisou a bruxa, sem levantar a cabeça.
— Como, quer dizer, COMO A SENHORA SABE?
Ela o ignorou. Secou a tinta na frente da vela, fechou a carta com um pingo de cera e colocou-a debaixo do castiçal. Então pegou o gato.
— Vovó Beedle vem arrumar aqui amanhã e você vai embora com ela, entendeu? A pia de mármore rosa fica para Velhusca Nutley. Faz anos que está de olho nela.
O gato miou, em anuência.
— Eu não tenho, quer dizer, NÃO TENHO A NOITE TODA — Advertiu Mort.
— Tem, sim. Eu não tenho. E não precisa gritar — disse a bruxa.
Ela se levantou, e Mortimer pôde ver como era curvada, quase como um arco. Com alguma dificuldade, a mulher tirou um chapéu pontudo do gancho na parede, firmou-o com diversos alfinetes nos cabelos brancos e apanhou duas bengalas.
Caminhou até Mortimer e olhou para ele com seus olhos pequenos e brilhantes.
— Será que levo o xale? Acha que vou precisar do xale? Não, imagino que não. Deve ser muito quente aonde vou.
Olhou com atenção para Mortimer e franziu a testa.
— Você é mais jovem do que eu pensava — avaliou. Mortimer não disse nada. Então, em voz baixa, Maná Tendão falou:
— Acho que não é quem eu estava esperando.
Mortimer pigarreou.
— Quem exatamente a senhora estava esperando? — perguntou.
— Morte — respondeu, sem rodeios. — Faz parte do acordo, entende? Ficamos sabendo a hora de nossa morte e nos é garantida uma... atenção pessoal.
— Eu sou ela — concluiu Mort.
— Ela?
— A atenção especial. Morte me enviou aqui. Trabalho para ele. Ninguém mais pode ter a mim.
Mortimer se deteve. Estava tudo errado. Ele seria mandado de volta para casa em desgraça. Sua primeira incumbência, e ele deitava tudo por terra. Já podia até ouvir o riso das pessoas.
O gemido começou nas profundezas do seu constrangimento e saiu como uma buzina de nevoeiro.
— Só que esse é meu primeiro trabalho e estraguei tudo!
A foice caiu no chão com um estrondo, partindo um pedaço da perna da mesa e cortando uma laje ao meio.
Maná observou-o durante algum tempo, com a cabeça de lado. Então disse:
— Entendi. Qual o seu nome, rapaz?
— Mort — resmungou Mort. — De Mortimer.
— Bem, Mort, imagino que você tenha uma ampulheta em algum lugar.
Mortimer assentiu, vagamente. Levou a mão ao cinto e exibiu o vidro. A bruxa inspecionou-o com ar pensativo.
— Temos mais ou menos um minuto — analisou. — Não nos resta muito tempo. Só me dê um instante para fechar a casa.
— Mas a senhora não entende! — rebateu Mort. — Vou estragar tudo de novo! Nunca fiz isso!
Ela lhe deu tapinhas na mão.
— Nem eu — disse, afinal. — Podemos aprender juntos. Agora pegue a foice e deixe de criancice, meu menino.
Apesar dos protestos dele, Maná impeliu-o para a neve e seguiu-o, trancando a porta com uma chave pesada de ferro, que pendurou num gancho perto da porta.
O gelo havia se apoderado da floresta, fazendo as raízes estalarem. A Lua estava se pondo, mas o céu se encontrava cheio de estrelinhas brancas que faziam o inverno parecer ainda mais frio. Maná Tendão estremeceu.
— Lá tem um cepo velho — comentou ela. — Dá uma bela vista do vale. No verão, é claro. Eu gostaria de me sentar.
Mortimer ajudou-a a caminhar pela neve e tirou o máximo possível de gelo do tronco. Eles se sentaram com a ampulheta a separá-los. Qualquer que fosse a vista no verão, ela agora consistia apenas de rochedos negros contra um céu do qual caíam pequenos flocos de neve.
— Não acredito nisso — disse Mort. — Quer dizer, a senhora fala como se quisesse morrer.
— Vou sentir saudade de algumas coisas — admitiu ela. — Mas vai cansando, sabe? A vida. Não se pode mais confiar no próprio corpo, e chega o momento de seguir adiante. Acho que já é hora de eu fazer outra coisa. Ele disse a você que o pessoal que lida com magia pode vê-lo o tempo todo?
— Não — respondeu Mort, sem convicção.
— Bem, nós podemos.
— Ele não gosta muito de bruxas e magos — apontou Mort.
— Ninguém gosta de um sabichão — rebateu ela, com certo prazer. — Nós damos trabalho. Os padres não; então gosta deles.
— Nunca me disse nada — ressalvou Mort.
— Ah. Eles estão sempre falando para as pessoas que a vida vai ser melhor depois da morte. Nós afirmamos que pode ser muito boa aqui mesmo, desde que se empenhem.
Mortimer hesitou. Queria dizer: a senhora está enganada, ele não é nem um pouco assim, não se importa com o fato de as pessoas serem boas ou más, desde que se mostrem pontuais. E gostem de gatos.
Mas pensou duas vezes. Ocorreu-lhe que as pessoas precisavam acreditar em alguma coisa.
O lobo uivou novamente, tão próximo que Mortimer olhou à volta, apreensivo. Do extremo oposto do vale, um segundo lobo respondeu. A cantoria foi retomada por outros dois, nos recônditos da floresta. Mortimer nunca ouvira nada tão melancólico.
Olhou de esguelha para o vulto inerte de Maná Tendão e então, com pânico crescente, fitou a ampulheta. Pôs-se de pé, apanhou a foice e girou-a no ar com as duas mãos.
A bruxa se levantou, deixando o corpo para trás.
Читать дальше