— Pessoal?
Ele tropeçou nos corpos caídos.
— Ah — disse.
Embora fosse lerdo, não tardou em se dar conta de algo muito importante. Estava num beco de As Sombras, e sozinho. Saiu correndo e conseguiu percorrer um bom pedaço do bairro.
Morte avançava lentamente pela sala dos marcadores de tempo, inspecionando as fileiras em série de ampulhetas em ação. Albert ia atrás, com o livro grande aberto nos braços.
Uma enorme cascata cinza de som troava ao redor. O barulho vinha das prateleiras, onde, estendendo-se ao infinito, fileiras e mais fileiras de ampulhetas derramavam a areia dos mortais. Era um som pesado, melancólico, um som que corria feito creme escuro sobre o rocambole da alma.
— MUITO BEM — disse Morte, afinal. — TOTAL DE TRÊS. UMA NOITE CALMA.
— Então seriam Maná Tendão, outra vez o abade Lobsang e essa princesa Keli — informou Albert.
Morte olhou as três ampulhetas na mão.
— EU ESTAVA PENSANDO EM MANDAR O GAROTO — comentou.
Albert consultou o livro.
— Bem, Maná Tendão não vai ser problema, e o abade é o que se pode chamar de uma pessoa experiente — avaliou. — Uma pena, a menina. Só 15 anos. Pode ser complicado.
— É. UMA LÁSTIMA.
— Patrão?
Morte estava segurando o terceiro vidro, pensativo, olhando o jogo de luz na superfície. Suspirou.
— ALGUÉM TÃO JOVEM ...
— O senhor está bem? — perguntou Albert, com a voz cheia de preocupação.
— O TEMPO, COMO UMA TORRENTE INCESSANTE, LEVA TODOS OS...
— Patrão!
— O QUÊ? — perguntou Morte, voltando a si.
— O senhor está trabalhando demais, é isso...
— DO QUE ESTÁ FALANDO, HOMEM?
— Por um instante, o senhor ficou meio alheio, patrão.
— BESTEIRA. NUNCA ME SENTI MELHOR. ONDE ESTÁVAMOS?
Albert encolheu os ombros e analisou os apontamentos do livro.
— Maná é bruxa — disse. — Pode ficar um pouco chateada se o senhor mandar Mort.
Todos os profissionais da magia ganhavam o direito de, no momento em que sua areia pessoal se esgotava, serem reivindicados pelo próprio Morte, e não por seus representantes.
Morte pareceu não ouvir Albert. Estava outra vez olhando a ampulheta da princesa Keli.
— QUAL É O NOME DAQUELA SENSAÇÃO DE DESGOSTO POR AS COISAS SEREM APARENTEMENTE COMO SÃO?
— Tristeza, senhor. Agora, eu acho...
— EU SOU A TRISTEZA.
Albert ficou boquiaberto. Por fim, conseguiu se controlar durante tempo o bastante para dizer:
— Patrão, a gente estava falando do Mort!
— QUE MORT?
— Seu aprendiz — lembrou Albert, com paciência. — O jovem alto.
— É claro. Bem, vamos mandá-lo.
— Patrão, será que ele está pronto para ir sozinho? — perguntou Albert.
Morte pensou a respeito.
— ELE VAI CONSEGUIR — respondeu, afinal. — É ESPERTO, APRENDE RÁPIDO E, FRANCAMENTE — acrescentou —, AS PESSOAS NÃO PODEM ESPERAR QUE EU FIQUE CORRENDO ATRÁS DELAS O TEMPO TODO.
Desorientado, Mortimer encarou a tapeçaria de veludo a alguns centímetros dos olhos.
Eu atravessei uma parede, pensou. E isso é impossível.
Com cuidado, empurrou a tapeçaria para o lado a fim de ver se existia uma porta escondida em algum lugar, mas não havia nada além do velho reboco, que rachara em alguns pontos para revelar os tijolos úmidos mas enfaticamente sólidos.
Experimentou cutucar a alvenaria. Estava claro que não voltaria pelo mesmo caminho.
— Bem — falou para a parede. — E agora?
Uma voz atrás dele disse:
— Hum. Com licença, por favor.
Ele se virou devagar.
No meio da sala, reunida em torno de uma mesa, havia uma família klatchiana composta de pai, mãe e meia dúzia de filhos pequenos. Oito pares de olhos redondos estavam cravados em Mortimer. O nono par, pertencente a uma pessoa idosa de sexo indefinido, não estava porque a criatura se valera do intervalo para abrir espaço na travessa de arroz, adotando a opinião de que mais vale um peixe cozido na mão do que qualquer número de aparições voando. O silêncio era pontuado pelo barulho da mastigação.
Num canto da sala abarrotada havia um pequeno santuário para Offler, o Deus Crocodilo de Klatch. Ele estava sorrindo exatamente como Morte, à exceção de que Morte não tinha um bando de passarinhos sagrados que lhe traziam notícias dos fiéis e lhe mantinham os dentes limpos.
Os klatchianos prezavam a hospitalidade sobre todas as outras virtudes. A mulher pegou um prato do armário e silenciosamente começou a enchê-lo, arrancando um pedaço de bagre das mãos da pessoa anciã. Os olhos pintados dela não se desgrudaram de Mortimer.
Era o pai que tinha falado. Nervoso, Mortimer os saudou.
— Desculpe — pediu. — Hã, parece que atravessei essa parede.
Foi péssimo, ele tinha de admitir.
— Por favor — disse o homem.
Com as pulseiras chacoalhando, a mulher arrumou algumas fatias de pimentão no prato e jogou sobre elas um molho verde-escuro que Mortimer temeu reconhecer. Ele o havia experimentado algumas semanas antes e, embora se tratasse de uma receita complicada, uma prova fora suficiente para saber que era feito de vísceras de peixe marinadas por vários anos num tanque de bílis de tubarão. Morte havia dito que aquele era um paladar com o qual se acostumava. Mortimer decidira não se dar ao trabalho.
Arriscou contornar a sala em direção ao vão com cortina de contas, e todas as cabeças se viraram para observá-lo. Tentou sorrir.
A mulher perguntou:
— Por que o demônio está mostrando os dentes, marido da minha vida?
O homem respondeu:
— Pode ser fome, lua do meu desejo. Ponha mais peixe!
A pessoa idosa resmungou:
— Eu estava comendo isso, filha ingrata. Que desgraça de mundo, quando não existe respeito pelos mais velhos!
O fato é que, embora as palavras entrassem nos ouvidos de Mortimer em klatchiano, com todos os floreios e sutis ditongos de uma língua tão antiga e sofisticada que tinha quinze palavras para designar “assassinato” antes mesmo de o resto do mundo começar a entender a idéia de se golpear a cabeça das pessoas com pedras, elas chegavam agora ao cérebro dele claras e compreensíveis como sua língua materna.
— Não sou nenhum demônio! Sou humano! — gritou ele, e parou, surpreso, ao notar que as palavras haviam saído num klatchiano perfeito.
— É bandido? — perguntou o pai. — Assassino? Para entrar assim... arrecadador de impostos?
Meteu a mão debaixo da mesa e exibiu um facão de carne amolado à finura de um papel. A mulher gritou, soltou o prato e puxou os filhos mais novos para si.
Mortimer viu a lâmina se agitar e entregou os pontos.
— Trago saudações dos grandes círculos do inferno — arriscou. A mudança foi notável. Baixaram o facão, e a família se abriu em sorrisos largos.
— É sorte quando um demônio vem visitar — exclamou o pai. — Qual é sua vontade, ó filho imundo das vísceras de Offler?
— O quê? — assustou-se Mort.
— O demônio traz bênção e fortuna ao homem que o ajuda — disse o homem. — Como lhe podemos ser úteis, ó hálito funesto da cova maldita?
— Bem, não estou com muita fome — adiantou Mort. — Mas se vocês souberem onde posso arranjar um cavalo veloz, eu poderia chegar a Sto Lat antes do pôr-do-sol.
O homem sorriu e se curvou:
— Conheço o lugar certo, excreção maléfica dos intestinos, se fizer a gentileza de me seguir.
Mortimer correu atrás dele. A pessoa mais velha observou-os sair com o olhar desconfiado, sem parar de mastigar.
— É isso que chamam de demônio por aqui? — ironizou. — Offler faz pouco desse lugar úmido. Até os demônios são de quinta categoria, não chegam nem aos pés dos que tínhamos na Terra Natal.
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