— Como o senhor faz isso? — perguntou ele. — Como é que eu fiz isso? Magia?
— MAGIA É QUE NÃO É, GAROTO. QUANDO VOCÊ CONSEGUIR FAZER ISSO SOZINHO, EU NÃO VOU TER MAIS NADA PARA LHE ENSINAR.
O rei, que agora estava bem mais embaçado, disse:
— É impressionante, tenho de admitir. Aliás, parece que estou sumindo.
— É O ENFRAQUECIMENTO DO CAMPO MORFOGÊNICO — explicou Morte.
A voz do rei não passava de um sussurro.
— Então é isso?
— ACONTECE COM TODO MUNDO. TENTE APROVEITAR.
— Como?
A voz não passava de um contorno no ar.
— APENAS SEJA VOCÊ MESMO.
Neste momento, o rei sucumbiu, ficando cada vez menor à medida que o campo se tornava um minúsculo pontinho brilhante. Aconteceu tão rápido que Mortimer quase não viu. De fantasma a grão de areia em meio segundo, apenas com um leve suspiro.
Morte pegou o negócio brilhante com cuidado e enfiou-o em algum lugar do manto.
— O que aconteceu com ele? — indagou Mort.
— SÓ ELE SABE — respondeu Morte. — VENHA.
— Minha avó diz que morrer é como dormir — acrescentou Mort, com uma ponta de esperança.
— EU NÃO SABERIA DIZER. NUNCA FIZ NENHUMA DAS DUAS COISAS.
Mortimer deu uma última longa olhada no corredor. As portas haviam se aberto, e as pessoas estavam saindo em debandada. Duas mulheres mais velhas tentavam consolar a princesa, mas a menina seguia na frente, de maneira que as senhoras pareciam quicar atrás dela como duas bolas. As três entraram em outro corredor.
— JÁ RAINHA — admirou-se Morte.
Ele gostava de estilo. Os dois já estavam no telhado quando voltou a falar.
— VOCÊ TENTOU AVISÁ-LO — disse, tirando a cevadeira de Pituco.
— Sim, senhor. Sinto muito.
— NÃO PODE INTERFERIR NO DESTINO. QUEM É VOCÊ PARA JULGAR QUEM DEVE VIVER OU MORRER?
Morte observou a fisionomia de Mortimer com atenção.
— SÓ OS DEUSES PODEM FAZER ISSO — acrescentou. — INTERVIR NO DESTINO DE UMA ÚNICA PESSOA PODE DESTRUIR O MUNDO INTEIRO. ESTÁ ME ENTENDENDO?
Desconsolado, Mortimer assentiu.
— O senhor vai me mandar de volta para casa? — perguntou. Morte se inclinou e ajudou-o a subir na traseira da sela.
— POR TER MOSTRADO COMPAIXÃO? NÃO. TALVEZ SE TIVESSE DEMONSTRADO PRAZER. MAS VOCÊ PRECISA APRENDER A COMPAIXÃO PRÓPRIA AO TRABALHO.
— E qual é?
— UMA PONTA AFIADA.
Os dias se passaram, embora Mortimer não soubesse ao certo quantos. O Sol escuro do mundo de Morte cruzava o céu com regularidade, mas as visitas ao espaço mortal não pareciam se prender a nenhum programa especial. Morte tampouco visitava apenas reis e guerras importantes — a maioria das visitas se destinava a indivíduos bastante comuns.
As refeições eram servidas por Albert, que sorria à beça para si mesmo e não falava muito. Ysabell ficava no quarto a maior parte do tempo, ou montava seu pônei nas charnecas negras para além do chalé. Vê-la com o cabelo ondeando ao sabor do vento seria mais notável se ela andasse melhor a cavalo, se o pônei fosse maior ou se o cabelo fosse do tipo que ondeia naturalmente. Alguns cabelos são assim, outros não são. O dela não era.
Quando não estava longe de casa fazendo aquilo a que Morte se referia como O SERVIÇO, Mortimer ajudava Albert, realizava trabalhos no jardim e no estábulo, ou ficava na imensa biblioteca de Morte, lendo com a rapidez e a voracidade de quem acaba de descobrir a magia da palavra escrita.
Obviamente a maioria dos livros da biblioteca se compunha de biografias.
Os volumes se mostravam diferentes em um aspecto. Eles próprios se escreviam. As pessoas que já haviam morrido apresentavam os livros cheios de capa a capa, e as que ainda não haviam nascido precisavam se conformar com as páginas em branco. As do meio... Mortimer tomava notas, marcando o lugar e contando as páginas extras, e calculava que alguns livros chegavam a gerar de quatro a cinco parágrafos por dia. Ele não reconhecia a caligrafia.
Então finalmente juntou coragem.
— UMA O QUÊ? — indignou-se Morte, sentado atrás da mesa floreada, girando na mão a espátula em forma de foice.
— Uma tarde de folga — repetiu Mort.
O cômodo de repente pareceu opressivamente grande, com ele muito exposto no meio de um tapete que parecia um descampado.
— MAS POR QUÊ? — quis saber Morte. — NÃO PODE SER PARA IR AO ENTERRO DA SUA AVÓ — acrescentou. — EU SABERIA.
— Eu só quero, sabe, sair e conhecer gente — disse Mort, tentando não desviar os olhos do inflexível olhar azul.
— MAS VOCÊ CONHECE GENTE TODOS OS DIAS — protestou Morte.
— E, eu sei, só que, bem, não por muito tempo — retrucou Mort. — Quer dizer, seria bom conhecer alguém com expectativa de vida maior do que alguns minutos. Senhor — completou.
Morte tamborilou os dedos na mesa, produzindo um som parecido com o de um rato sapateando, e dirigiu a Mortimer mais alguns segundos de olhar fixo. Notou que o rapaz parecia ter muito menos cotovelos do que antes, já andava um pouco mais ereto e sabia usar palavras como “expectativa”. A culpa era da biblioteca.
— TUDO BEM — disse, com relutância. — MAS AINDA ACHO QUE VOCÊ TEM TUDO DE QUE PRECISA AQUI. O SERVIÇO NÃO É PESADO, É?
— Não, senhor.
— E VOCÊ TEM COMIDA, CAMA, DIVERSÃO E GENTE DA SUA IDADE.
— Perdão, senhor?
— MINHA FILHA — esclareceu Morte. — VOCÊ JÁ A CONHECEU, EU ACHO.
— Ah. Sim, senhor.
— ELA É MUITO AFETUOSA, DEPOIS QUE PASSAMOS A CONHECÊ-LA.
— Tenho certeza de que sim, senhor.
— NO ENTANTO, VOCÊ QUER... — Morte cuspiu as palavras num esgar de nojo — ... UMA TARDE DE FOLGA?
— Gostaria, sim senhor. Com sua licença, senhor.
— POIS BEM. QUE SEJA. VOCÊ TEM ATÉ O PÔR-DO-SOL.
Morte abriu o grande livro, pegou uma caneta e começou a escrever. De vez em quando, estendia o braço e fazia correr as contas de um ábaco.
Depois de um minuto, ergueu a cabeça.
— AINDA ESTÁ AÍ? — perguntou. — E NO SEU TEMPO LIVRE — Acrescentou, de mau humor.
— Hum — soltou Mort. — As pessoas vão me enxergar, senhor?
— TENHO CERTEZA DE QUE SIM — respondeu Morte. — EXISTE MAIS ALGUMA COISA EM QUE EU POSSA AJUDÁ-LO ANTES DE IR PARA ESSA SEM-VERGONHICE?
— Bem, senhor, tem uma coisa, sim. Não sei entrar no mundo dos mortais — disse Mort, em desespero.
Morte suspirou audivelmente e abriu uma gaveta da mesa.
— SAIA POR LÁ.
Com tristeza, Mortimer assentiu e percorreu o longo caminho até a saída do gabinete. Quando já estava abrindo a porta, Morte tossiu.
— GAROTO! — chamou ele, e jogou alguma coisa em sua direção.
Mortimer pegou-a no susto, enquanto a porta se abria.
Não havia mais porta. O tapete profundo se transformou num chão de pedras barrentas. A luz do dia caiu sobre ele como mercúrio.
— Mort — disse Mort, para quem pudesse ouvir.
— O quê? — perguntou um barraqueiro ao lado.
Mortimer correu os olhos à volta. Estava num mercado abarrotado de pessoas e animais. Todo tipo de mercadoria era vendido ali, desde agulhas até — por intermédio de alguns profetas itinerantes — visões da salvação. Era impossível conversar sem que fosse gritando.
Mortimer cutucou as costas do barraqueiro.
— O senhor está me vendo? — perguntou. O barraqueiro o fitou.
— Acho que sim — respondeu afinal. — Ou alguém bem parecido com você.
— Obrigado — disse Mort, imensamente aliviado.
— Não tem de quê. Vejo uma porção de gente todos os dias, de graça. Quer comprar cadarço?
— Acho que não — lamentou Mort. — Que lugar é esse?
— Você não sabe?
Duas pessoas próximas à barraca estavam pensativamente olhando para Mortimer. A mente dele disparou.
Читать дальше