Ele vasculhou o manto e retirou uma ampulheta na qual a areia negra corria entre uma treliça de ferro. Deu uma sacudidela experimental:
— E VAI VIVER MAIS UNS 30, 35 ANOS — disse, com um suspiro.
— E sai por aí matando as pessoas? — indignou-se Mort. Ele sacudiu a cabeça. — Nesse mundo não tem justiça.
Morte suspirou outra vez.
— NÃO — concluiu afinal, entregando o drinque para um pajem que ficou surpreso ao se ver de repente segurando um copo vazio. — SÓ TEM EU.
Sacou a espada, que tinha a mesma lâmina fina e azul da foice, e deu um passo à frente.
— Pensei que o senhor usasse a foice — sussurrou Mort.
— REI GANHA A ESPADA — informou Morte. — É UM PRIVILÉGIO REAL.
A mão de dedos ossudos se enfiou novamente nas profundezas do manto e surgiu com a ampulheta de Olerve. Na metade superior, os últimos poucos grãos de areia se juntavam.
— PRESTE MUITA ATENÇÃO — disse Morte. — PODE SER QUE DEPOIS EU FAÇA PERGUNTAS.
— Espere — pediu Mort, aflito. — Não é justo. O senhor não pode impedir isso?
— JUSTO? — rebateu Morte. — QUEM FALOU EM JUSTIÇA?
— Bem, se o outro homem é tão...
— ESCUTE AQUI — disse Morte —, ISSO NÃO TEM NADA A VER COM JUSTIÇA. NÃO DÁ PARA TOMAR PARTIDO. MINHA NOSSA! QUANDO CHEGA A HORA, ACABOU. NÃO TEM JEITO, GAROTO.
— Mort — resmungou Mort, encarando as pessoas.
E então a viu. Um movimento casual na multidão abriu um canal entre Mortimer e a garota magra e esguia sentada entre um grupo de mulheres mais velhas, atrás do rei. Ela não era propriamente bonita, sendo superdotada no departamento de sardas e magricela demais. Mas vê-la provocou um abalo que aqueceu o cérebro de Mortimer e lhe acertou a boca do estômago.
— CHEGOU A HORA — anunciou Morte, cutucando Mortimer com o cotovelo pontudo. — SlGA-ME.
Ele avançou em direção ao rei, levando a espada na mão. Mortimer começou a segui-lo. Por um segundo, os olhos da garota encontraram os dele e instantaneamente se afastaram... então voltaram, arrastando-lhe a cabeça e fazendo a boca se abrir num “O” de horror.
O coração de Mortimer se afrouxou. Ele saiu em disparada na direção do rei.
— Cuidado! — gritou. — O senhor está correndo perigo!
E o mundo se transformou num grande melaço. Começou a se encher de sombras roxas e azuis, como num sonho causado por insolação, e o som foi perdendo intensidade até a balbúrdia da sala ficar distante e chiada como música nos fones de ouvido de outra pessoa. Mortimer viu Morte ao lado do rei, com os olhos voltados para... ... a galeria dos menestréis.
Viu o arqueiro, viu o arco, viu a flecha disparando na velocidade de uma lesma doente. Por mais lenta que estivesse, ele não conseguia ultrapassá-la. Pareceu levar horas para controlar as pernas de chumbo, mas finalmente conseguiu trazer ambos os pés ao chão ao mesmo tempo e saltou com a rapidez de um deslocamento continental.
Enquanto ele se lançava pelo ar, sem rancor, Morte disse:
— NÃO VAI ADIANTAR. É NATURAL QUE VOCÊ QUEIRA TENTAR, MAS NÃO VAI ADIANTAR.
Como em sonho, Mortimer foi levado para um mundo silencioso...
A flecha acertou o alvo. Com as duas mãos, Morte ergueu a espada num golpe suave que atravessou o pescoço do rei sem deixar nenhuma marca. Para Mortimer, movendo-se naquele mundo crepuscular, era como se uma imagem espectral tivesse caído no chão.
Não podia ser o rei, porque ele estava ali de pé, encarando Morte com uma fisionomia de extrema surpresa. Havia um negócio aos pés dele, e a distância as pessoas reagiam com gritos e choros.
— UM SERVIÇO BEM FEITO — comentou Morte. — A REALEZA É SEMPRE UM PROBLEMA. COSTUMA RESISTIR. OS CAMPONESES, POR OUTRO LADO, NÃO VÊEM A HORA.
— Quem é você? — perguntou o rei. — O que está fazendo aqui? Hein? Guardas! Eu exij...
A insistente mensagem dos olhos finalmente chegou ao cérebro. Mortimer ficou impressionado: Olerve havia reinado durante muitos anos e, mesmo quando morto, sabia se comportar como rei.
— Ah — soltou ele. — Entendi. Não esperava vê-lo tão cedo.
— SUA MAJESTADE — disse Morte, inclinando-se. — POUCOS ESPERAM.
O rei olhou à volta. Estava escuro e silencioso naquele mundo de sombras, mas do lado de fora parecia haver uma enorme confusão.
— Sou eu ali no chão, não sou?
— TEMO QUE SIM, SENHOR.
— Belo trabalho. Arco?
— EXATAMENTE. E AGORA, SE O SENHOR NÃO SE...
— Quem foi? — perguntou o rei. Morte hesitou.
— UM ASSASSINO DE ALUGUEL DE ANKH-MORPORK— revelou, afinal.
— Hum. Brilhante. Parabenizo Sto Helit. E eu me enchendo de antídotos... Não existe antídoto para a lâmina de metal, não é? Não é?
— DE FATO, SENHOR.
— O velho truque da escada de corda e cavalo veloz perto da ponte levadiça, certo?
— PARECE QUE SIM, SENHOR — respondeu Morte, delicadamente tomando o vulto do rei pelo braço. — MAS, SE ISSO LHE SERVE DE CONSOLO, O CAVALO PRECISA SER VELOZ.
— Hein?
Morte deixou o sorriso fixo se alargar um pouco mais.
— AMANHÃ TENHO UM ENCONTRO COM ESTE ESPECÍFICO CAVALEIRO EM ANKH — explicou Morte. — ELE ACEITOU A MARMITA QUE O DUQUE LHE OFERECEU.
O rei, cuja aptidão para o cargo implicava não ser rápido de entendimento, considerou aquilo por um instante e soltou uma risada curta. Então pela primeira vez notou Mortimer.
— Quem é esse? — perguntou. — Também está morto?
— MEU APRENDIZ — respondeu Morte. — QUE MUITO EM BREVE VAI LEVAR UMA CHAMADA, O TRATANTE.
— Mort — disse Mort, automaticamente.
O som da conversa flutuava à volta, mas ele não conseguia despregar os olhos da cena ao redor. Sentia-se real. Morte parecia concreto. O rei se mostrava surpreendentemente bem para alguém que estava morto. Mas o resto do mundo era uma massa de sombras ambulantes, movendo-se através dele como se não fossem mais sólidas do que o vento.
A garota estava se ajoelhando, aos prantos.
— É minha filha — disse o rei. — Eu deveria estar triste. Por que não estou?
— AS EMOÇÕES FICAM PARA TRÁS. É TUDO UMA QUESTÃO DE GLÂNDULAS.
— Ah. Então é isso. Ela não pode nos ver, pode?
— NÃO.
— Imagino que não haja possibilidade de eu... ?
— NÃO — cortou Morte.
— Só que ela vai ser rainha e se eu pudesse ao menos avisar...
— SINTO MUITO.
A menina ergueu a cabeça e olhou através de Mortimer. Ele viu o duque se aproximar por trás dela e pousar-lhe a mão no ombro. Um leve sorriso pairava nos lábios do homem. Era o tipo de sorriso que se esconde nos bancos de areia, à espera de nadadores imprudentes.
— Não posso fazer você me ouvir — disse Mort. — Não confie nele!
Ela encarou Mortimer, esfregando os olhos. Ele estendeu o braço e viu a própria mão passar direto pela dela.
— VAMOS, GAROTO. CHEGA DE MALANDRAGEM.
Mortimer sentiu os dedos de Morte lhe apertarem o ombro, sem hostilidade. Relutante, virou-se e acompanhou o rei e seu mestre.
Os três saíram pela parede. Mortimer estava na metade do caminho quando se deu conta de que atravessar paredes era impossível.
A lógica suicida quase o matou. Ele começou a sentir a frieza da pedra, e então ouviu uma voz ao pé do ouvido:
— PENSE ASSIM: A PAREDE NÃO PODE ESTAR AÍ. SE ESTIVESSE, VOCÊ NÃO ESTARIA PASSANDO POR ELA, ESTARIA, GAROTO?
— Mort — irritou-se Mort.
— QUÊ?
— Meu nome é Mort. Ou Mortimer — disse Mort, com raiva, e seguiu adiante.
O frio ficou para trás.
— PRONTO. NÃO FOI TÃO DIFÍCIL, FOI?
Mortimer correu os olhos pelo corredor e experimentou bater na parede. Devia mesmo ter andado por ela, mas agora a estrutura parecia suficientemente sólida. Pontinhos de mica brilhavam em seu corpo.
Читать дальше