— É possível atravessar paredes? — perguntou Mort, em desespero.
Cortabem se deteve, com as mãos já a caminho de uma garrafa grande, cheia de um líquido viscoso.
— Usando magia?
— Hum — soltou Mort. — Acho que não.
— Então escolha paredes bem finas — sugeriu Cortabem. — Ainda melhor, use a porta. Aquela ali seria perfeita, se só veio aqui me fazer perder tempo.
Mortimer hesitou, então pôs o saco de moedas sobre a mesa. O mago olhou para elas, soltou um pequeno gemido e estendeu o braço. Mortimer segurou-o pelo pulso.
— Eu já atravessei paredes — disse, devagar.
— Claro que já, claro que já — murmurou Cortabem, sem despregar os olhos do saco.
Tirou a rolha da garrafa de líquido azul e tomou um gole distraído.
— Só que antes de atravessar eu não sabia que podia, enquanto atravessava não sabia que estava conseguindo e agora que atravessei não lembro como fiz. E quero atravessar de novo.
— Por quê?
— Porque — respondeu Mort — se eu puder atravessar paredes, posso fazer qualquer coisa.
— Muito profundo — assentiu Cortabem. — Filosófico. E qual o nome da jovem do outro lado dessa parede?
— Ela é... — Mort engoliu em seco. — Não sei o nome. Se é que existe uma jovem — acrescentou, insolente. — Não estou dizendo que existe.
— Certo — disse o mago, e tomou outro gole. — Pois bem. Como atravessar paredes. Vou pesquisar. Mas pode ficar caro.
Com cuidado, Mort pegou o saco e retirou uma pequena moeda de ouro.
— Um sinal — avisou, botando-a na mesa.
Cortabem pegou a moeda como se esperasse que ela fosse explodir ou evaporar e examinou-a com atenção.
— Nunca vi esse tipo de moeda — objetou. — Que letra ondulada é essa?
— Mas é ouro, não é? — perguntou Mort. — Quer dizer, não precisa aceitar...
— Não, não, é ouro — apressou-se em dizer Cortabem. — É ouro, sim. Eu só estava querendo saber de onde era, só isso.
— Você não ia acreditar — notou Mort. — A que horas é o pôr-do-sol aqui?
— Em geral conseguimos encaixá-lo entre o dia e a noite — respondeu Cortabem, ainda fitando a moeda e tomando pequenos goles da garrafa de líquido azul. — Mais ou menos agora.
Mortimer olhou para fora da janela. A rua já dava mostras de anoitecer.
— Eu volto — murmurou, e avançou para a porta.
Ele ouviu o mago gritar alguma coisa, mas já estava correndo em disparada pela rua.
Começava a entrar em pânico. Morte estaria à sua espera a trinta quilômetros dali. Haveria briga. Haveria uma terrível...
— AH, GAROTO.
Um vulto familiar saiu do clarão da barraca de enguia frita, segurando um prato de búzios.
— O VINAGRE ESTÁ BEM PICANTE. SlRVA-SE. AINDA TENHO UM ESPETO.
Mas, obviamente, só porque ele estava a trinta quilômetros de distância, não queria dizer que também não estivesse ali...
E, na sala desarrumada, Cortabem não parava de girar a moeda de ouro entre os dedos, sussurrando “paredes” e bebendo o líquido azul.
Só pareceu se dar conta do que estava fazendo quando já não havia mais bebida, momento no qual os olhos se voltaram para a garrafa e em meio a uma crescente névoa rosada, leram o rótulo dizia “Revingorante Cabritismo e Possão Mágica da Paichão, Apenas Uma Culher Cheia Antis di Drumir, e Piquena Assim”.
— Sozinho? — perguntou Mort.
— EXATAMENTE. CONFIO EM VOCÊ.
— Nossa!
A proposta tirou tudo o mais da cabeça de Mortimer, e ele se viu surpreso ao descobrir que não estava nauseado. Assistira a muitas mortes na última semana, e todo o pavor desaparecia quando sabíamos que estaríamos conversando com a vítima logo depois. A maioria delas ficava aliviada, uma ou duas se mostravam zangadas, mas todas se achavam dispostas a ouvir algumas palavras amigas.
— ACHA QUE CONSEGUE?
— Bem, senhor. Acho que sim.
— É ESSE O ESPÍRITO. DEIXEI PITUCO NO BEBEDOURO DA ESQUINA. LEVE-O PARA CASA QUANDO TERMINAR.
— O senhor vai ficar aqui?
Morte contemplou a rua. As órbitas oculares brilharam.
— ACHEI QUE TALVEZ PUDESSE PASSEAR UM POUCO — disse, misterioso. — NÃO ESTOU ME SENTINDO MUITO BEM. UM POUCO DE AR FRESCO SERIA EXCELENTE.
Pareceu se lembrar de alguma coisa, ocultou a mão nas sombras do manto e sacou três ampulhetas.
— TUDO ACERTADO — avaliou. — DIVIRTA-SE.
Deu meia-volta e saiu pela rua, cantarolando.
— Hum. Obrigado — disse Mort.
Então levou as ampulhetas à luz, notando a que já estava em seus últimos grãos de areia.
— Quer dizer que estou no comando? — gritou, mas Morte havia dobrado a esquina.
Pituco saudou-o com um leve relincho de reconhecimento, Mortimer montou — o coração acelerado pela apreensão e pelo peso da responsabilidade. Os dedos trabalharam automaticamente, tirando a foice da bainha e ajustando a lâmina (que brilhou azul-metálica na noite, cortando a luz das estrelas como salame). Ele subiu com cuidado, encolhendo-se por causa das feridas da sela do campeão do Patrício, mas montar Pituco era como cavalgar um travesseiro. Bêbado de autoridade delegada, lembrou-se então de tirar do alforje a capa do Morte e prendeu-a ao pescoço com o broche prateado.
Deu outra olhada na primeira ampulheta e cutucou Pituco com os joelhos. O cavalo cheirou o ar frio e começou a trotar.
Atrás deles, Cortabem saiu correndo de casa, avançando pela rua gelada com as roupas esvoaçando.
Agora o cavalo andava a meio galope, aumentando a distância entre os cascos e o chão de pedras. Com uma chicotada do rabo, venceu os telhados e voou para o céu frio.
Cortabem não viu nada disso. Tinha coisas mais urgentes na cabeça. Deu um salto aéreo e caiu por inteiro na água gelada do bebedouro de cavalos, deitando-se aliviadamente entre os pedaços de gelo. Depois de um tempo, a água começou a evaporar.
Mortimer manteve baixa altitude pelo puro prazer de sentir a velocidade. Os campos adormecidos bramiam, inaudíveis, logo abaixo. Pituco avançava num galope confortável, com os grandes músculos deslizando sob a pele como jacarés em bancos de areia, e a crina a açoitar o rosto de Mortimer. A noite se esquivava da ponta da foice, mas era cortada em duas metades aneladas.
Eles avançaram sob o luar tão silenciosamente quanto uma sombra, visíveis apenas aos gatos e seres que se dedicavam a coisas que o homem não deveria saber.
Mais tarde Mortimer não se lembraria, mas ele provavelmente riu.
Logo as planícies geladas cederam espaço para os terrenos irregulares em torno das montanhas, e então as próprias Ramtops surgiram na direção deles. Pituco abaixou a cabeça e aumentou o passo, tendo em mira uma passagem entre duas montanhas pontudas como os dentes de um gnomo. Em algum lugar, um lobo uivou.
Mortimer deu outra olhada na ampulheta. A estrutura era esculpida em madeira de carvalho e raiz de mandrágora, e, mesmo ao luar, a areia se mostrava dourada. Girando o vidro, conseguiu divisar o nome “Ammeline Tendão” gravado em traços levíssimos.
Pituco diminuiu a marcha. Mortimer olhou para a floresta salpicada de uma neve que era prematura ou terrivelmente tardia (podia ser as duas coisas, porque as Ramtops estocavam clima e distribuíam-no sem qualquer compromisso com a verdadeira época do ano).
Um buraco se abriu debaixo deles. Pituco mais uma vez desacelerou, deu meia-volta e desceu para uma clareira branca de neve. Ela era redonda, com um pequeno chalé exatamente no meio. Se a terra à volta não se encontrasse coberta de neve, Mortimer teria notado que não havia cepos; as árvores não tinham sido cortadas, apenas haviam desanimado de crescer ali. Ou tinham fugido.
A luz de vela irradiava de uma das janelas do andar de baixo, criando uma poça laranja sobre a neve.
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