Nunca tão bem assim. Nunca mais. Mas se sentiria bem, sem dúvida.
Então ele terminou. Charlie abaixou a cabeça. As criaturas sobre o penhasco deixaram as últimas notas morrerem no ar. Pararam de bater os pés, pararam de bater palmas, pararam de dançar. Charlie tirou o chapéu verde de seu pai e com ele abanou o rosto.
Spider sussurrou:
— Isso foi fantástico.
— Você poderia ter feito a mesma coisa — observou Charlie. — Acho que não. O que estava acontecendo, afinal? Senti como se você estivesse fazendo alguma coisa, mas não consegui descobrir o quê.
— Eu resolvi as coisas. Para a gente. Eu acho. Não tenho certeza— E não tinha mesmo. Agora que a música acabara, o conteúdo da letra se dissipava, como um sonho pela manhã.
Apontou para a boca da caverna que estava bloqueada pelas pedras.
— Foi você que fez aquilo?
— Sim — respondeu Spider. — Achei que era o mínimo que eu poderia fazer. Mas o Tigre alguma hora vai conseguir sair. Eu queria ter feito algo pior do que deixá-lo preso, pra falar a verdade.
— Não se preocupe. Eu fiz algo bem pior.
Observou enquanto os animais se dispersavam. O pai não estava lá, e isso não o surpreendeu.
— Vamos. Precisamos voltar.
Spider voltou ao hospital para ver Rosie no horário de visitas. Levava consigo uma caixa grande de bombons, a maior que conseguira comprar na lojinha de presentes do hospital.
— Pra você.
— Obrigada.
— Disseram que talvez a minha mãe sobreviva. Parece que ela abriu os olhos e pediu mingau. O médico disse que é um milagre.
— Sim. A sua mãe pedindo comida. Parece um milagre, sem dúvida.
Rosie deu um tapa no braço dele, aproveitando para deixar a mão ali mesmo.
— Sabe — começou após alguns instantes —, talvez você ache isso bobo. Mas quando eu estava lá, no escuro, com a minha mãe, achei que você estava me ajudando. Eu senti como se você estivesse afastando a fera. Que, se você não tivesse feito o que quer que fez, ela teria nos matado.
— E... talvez eu tenha ajudado.
— Sério?
— Eu não sei. Acho que sim. Eu também estava em apuros, e aí pensei em você.
— Situação muito complicada?
— Sim. Muito.
— Será que você pode me servir um copo d’água, por favor?
Ele serviu.
— Spider...O que você faz?
— O que eu faço?
— Pra ganhar a vida.
— Ah, o que eu estiver a fim de fazer.
— Acho que vou ficar aqui mais um tempo. As enfermeiras dizem que precisam muito de professores na ilha. Eu gostaria de fazer alguma diferença.
— Pode ser divertido.
— E o que você faria se eu ficasse?
— Ah... Bom, se você ficasse por aqui, eu certamente acharia alguma coisa para me manter ocupado.
Os dois entrelaçaram os dedos, deixando as mãos tão apertadas quanto um nó de marinheiro.
— Você acha que a gente vai dar certo?
— Acho que sim — respondeu Spider, sério. — E, se eu me encher de você, posso ir embora e arranjar outra coisa pra fazer. Então não se preocupe.
— Ah. Não estou preocupada.
E não estava. Por baixo da doçura em sua voz, havia uma dureza de aço. Dava pra ver de onde vinha a dureza de sua mãe.
Charlie encontrou Daisy na praia, numa cadeira de praia. Pensou que ela tivesse adormecido ao sol. Quando sua sombra a cobriu, ela disse:
— Oi, Charlie.
Não abriu os olhos.
— Como você sabia que era eu?
— O seu chapéu tem cheiro de charuto. Você vai se livrar dele rapidinho, né?
— Não. Eu já falei. E herança de família. Quero usá-lo até morrer, e depois deixar para os meus filhos. E então... Você ainda tem o seu emprego como policial?
— Mais ou menos. O meu chefe me falou que decidiram que eu estava sofrendo de esgotamento nervoso por causa do trabalho. Portanto estou de licença médica até me sentir bem para voltar.
— Ah;; E quando será isso?
— Não tenho certeza. Pode me passar o bronzeador?
Ele tinha uma caixinha no bolso. Tirou a caixinha e colocou sobre o braço da cadeira de praia.
— Num instante. Ahm... — Ele fez uma pausa. — Sabe, a gente já fez a parte super embaraçosa disso à queima-roupa. — Abriu a caixinha. — Mas esse é um presente meu para você. Bom, a Rosie me devolveu. A gente pode trocar por uma que você goste. Escolha uma diferente. Talvez nem sirva no seu dedo. Mas é seu. Se você o quiser. E... ahm.. se me quiser.
Ela pegou a caixinha e tirou de lá a aliança de noivado.
— Humpf. Tudo bem. Desde que você não esteja fazendo isso só pra ter o limão de volta.
O Tigre caminhava com seu andar predatório. A cauda agitava-se, irritada, de um lado para o outro enquanto andava para lá e para cá, perto da entrada da caverna. Seus olhos brilhavam como tochas de esmeralda na escuridão.
— O mundo todo, todas as coisas, tudo era meu. A lua, as estrelas, o sol, as histórias. Eu era dono de tudo isso.
— Creio ser de grande importância chamar à sua atenção que você já disse isso — observou uma vozinha no fundo da caverna.
O Tigre parou de andar. Virou-se e foi até o fundo da caverna, fluindo como se fosse um tapete de pêlos sobre molas hidráulicas. Caminhou até chegar perto da carcaça de um boi e, com voz calma, disse:
— Como é que é?
Ouviu-se um som de algo cavando dentro da carcaça. A ponta de um focinho surgiu das costelas.
— Na verdade — começou o ser —, eu estava concordando com você, por assim dizer. Era o que eu estava fazendo. — Pequenas mãos branquinhas puxaram uma faixa fina de carne seca dentre duas costelas, revelando um animal que tinha a cor de neve suja. Talvez fosse um suricato albino, ou algum tipo bastante peculiar de doninha, em sua pelagem de inverno. Tinha olhos de bichinho que comia carniça. — O mundo todo, todas as coisas, tudo era meu. A lua, as estrelas, o sol, as histórias. Eu era dono de tudo isso — continuou o bichinho. — E poderia ser meu de novo.
O Tigre ficou olhando para o pequeno animal. Então, sem aviso, uma de suas enormes patas desceu sobre ele, esmagando as costelas da carcaça, quebrando-a em pequenos fragmentos fétidos, prendendo o animalzinho ao chão. Ele se contorcia, mas não conseguia escapar.
— Você só está aqui — ameaçou o Tigre, seu enorme focinho bem perto da pequenina cabeça do animal branco — porque eu permito. Você entendeu? Porque, da próxima vez que você disser algo que me irrite, eu arranco a sua cabeça.
— Mmmmmf— disse o bicho que se parecia com uma doninha.
— Você não quer que eu morda a sua cabeça e a arranque, certo?
— Nggk— negou o bichinho. Seus olhos eram de um azul pálido, duas lascas de gelo, e brilhavam enquanto se contorcia, incomodado com o peso da pata gigante.
— Então prometa que vai se comportar e ficar quieto — grunhiu o Tigre. Ergueu um pouco a pata para permitir que o animal falasse.
— Sem dúvida — concordou a Coisinha branquela, de um jeito muitíssimo educado. Com um movimento ágil, contorceu-se e enfiou os dentinhos afiados na pata do Tigre. O Tigre urrou de dor e fez um movimento rápido com a pata, o que fez o animalzinho voar pelos ares. Ele bateu no teto de pedra, quicou sobre uma pedra que saía da parede e, de lá, saiu como uma flecha, um vulto branco, encardido, para a parte mais funda da caverna, onde o teto era muito baixo e próximo ao chão, e onde havia muitos lugares para um pequeno animal esconder-se, lugares que um animal maior não conseguiria alcançar.
O Tigre caminhou para o fundo da caverna o mais fundo que pôde.
— Você acha que eu não posso esperar? Você terá que sair daí mais cedo ou mais tarde. E eu não vou a lugar nenhum.
O Tigre deitou-se. Fechou os olhos e logo começou a fazer ruídos de quem dormia, bastante convincentes.
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